Precariedade laboral marca a actividade artística na Europa. Apesar de tudo?
Uma boa parte dos profissionais das artes do espectáculo ? quer se trate de actores, bailarinos, ?performers?, músicos ou de pessoal técnico ? vive a maior parte do tempo na corda bamba, divididos entre a possibilidade de um emprego a termo certo e a permanente incerteza de voltar a conseguir um trabalho. Quando aplaudimos a sua presença em palco ou no ecrã, raramente imaginamos que a actividade destes profissionais não se resume ao tempo consagrado aos ensaios e aos espectáculos, que podem variar entre uns poucos de dias a uns meses, mas também à formação, à procura de novos trabalhos, à gestação de novos projectos, à experimentação e à pesquisa. Os contratos de trabalho nas áreas de actividade ligadas à produção das artes do palco ou do audiovisual, porém, limitam-se habitualmente ao tempo que medeia entre a preparação e a concretização das respectivas produções. Como vivem, então, os profissionais do espectáculo quando não têm um vínculo estável a uma empresa ou companhia produtora deste género de oferta cultural? Que tipo de protecção social, traduzida nomeadamente em subsídios de intermitência ou em regimes fiscais de excepção, é concedida aos trabalhadores da área artística, em Portugal e na Europa, para fazerem face ao desemprego conjuntural que marca a sua actividade? Foi a estas e outras perguntas que nos propusemos responder no dossier deste mês.
O exemplo que vem de França
De acordo com a pesquisa efectuada pela Página, o único país que parece dar uma resposta concreta a este problema parece ser a França, cujo modelo de apoio aos profissionais intermitentes da área do espectáculo é, possivelmente, o mais regulamentado e o que maior número de benefícios oferece no espaço europeu. Este tipo de apoio, criado pelo Estado francês em 1958, surgiu com o objectivo de organizar um regime de protecção aos artistas face à precariedade que marcava a sua actividade. A natureza do desemprego estrutural da área artística em França, porém, modifica-se ao longo das duas décadas seguintes e altera radicalmente os pressupostos em que funcionava. Em 1982, o governo de esquerda recém-chegado ao poder em França põe em prática uma lógica de segmentação de direitos, medidos pela duração do tempo de emprego, mantida até hoje, e que, apesar de contestada, garantiu desde então uma subsistência mínima a estes profissionais. De acordo com o actual modelo, os profissionais das artes do espectáculo têm de conseguir um número mínimo de 507 horas de trabalho num período de 11 meses de trabalho para beneficiarem de um apoio financeiro que se pode prolongar até um ano - calculado em função dos rendimentos obtidos ao longo desse período - cuja remuneração é composta por 60% do salário habitual e por 40% de um subsídio de intermitência. Através deste tipo de apoio financeiro, entre 1993 e 2003 o número de trabalhadores profissionais intermitentes no sector cultural francês passou de 50 mil para cem mil, na sua maioria jovens criadores e intérpretes de pequenas companhias, que actuam, essencialmente, nas novas áreas do espectáculo, como o novo circo ou o teatro de rua, mas também no teatro, na dança e no cinema. Em Junho de 2003, porém, os trabalhadores intermitentes das artes do palco decretaram greve aos espectáculos de Verão, que anualmente atraem milhares de turistas àquele país, no seguimento de um acordo assinado entre alguns sindicatos do sector e o ministério da cultura, que, na opinião deles, enfraquecia o seu estatuto e os fazia perder regalias. Esta situação levou à criação de um movimento de defesa dos direitos dos intermitentes, que ao longo dos últimos dois anos se tem batido pela manutenção do anterior estatuto. A renegociação da convenção que regula este tipo de subsídio tem estado a ser negociado entre o governo, os empresários e os sindicatos do sector. Porém, as perspectivas para os artistas intermitentes não são boas, já que, na opinião do governo francês, o sistema revela um défice crescente, actualmente calculado em 15 milhões de euros. Os intermitentes, por seu lado, dizem que as actuais regras serviram para agravar ainda mais o défice, aumentar as desigualdades no interior da classe e incitar às falsas declarações de trabalho, temendo agora que as propostas apresentadas pelo governo francês levem a que apenas os artistas com emprego regular sejam abrangidos pelo novo regime de apoio. Para os outros, a recusa de trabalho a tempo parcial oferecida pelas entidades empregadoras, consideradas por muitos como ?pleno emprego precário?, pode levar à exclusão do sistema de apoio. Desta forma, dizem, acabar-se-á aos poucos com o apoio aos artistas intermitentes e, gradualmente, eles desaparecerão do panorama cultural francês.
Outros exemplos na Europa
Em Espanha também existe legislação de apoio à intermitência na área do espectáculo, mas não é tão desenvolvida como a francesa. Em 2002, a Federação dos Actores do Estado Espanhol negociou o actual sistema de quotização junto do governo e dos empresários do sector, mantendo a especificidade dos artistas no regime geral de segurança social. Apesar de existir legislação específica que regula a actividade do artista enquanto sujeito cultural, nomeadamente o regime laboral dos artistas em espectáculos públicos, aprovado em 1984, o direito espanhol carece ainda de um estatuto geral do artista ou do criador cultural. A quotização social dos profissionais do espectáculo em Espanha representa o dobro do desconto normal dos restantes trabalhadores, ou seja, por cada dia de trabalho desconta-se o equivalente a dois, ao longo de um ano. Esta situação permite que, no ano seguinte, se um actor trabalhar durante meio ano possa beneficiar de três meses de subsídio de intermitência. Neste contexto, ?as empresas produtoras assumem muitas vezes um papel paternalista, contratando os actores o máximo de tempo possível de forma que estes consigam atingir os mínimos atingidos pela lei?, explica à Página Pedro Fresneda, 32 anos, actor e director artístico do Teatro Ensalle, sedeado em Vigo, na Galiza. Apesar disto, diz, ?é difícil chegar a uma situação de pleno emprego que permita descontar o suficiente para garantir o subsídio de intermitência?. Para isso, os actores de teatro espanhóis trabalham habitualmente ao serviço de várias companhias de forma a garantir emprego ao longo do ano. Mas nem sempre isso é possível. ?Em Espanha costuma dizer-se que nenhum actor é bom se não for empregado de mesa?, ironiza Fresneda. No Reino Unido os trabalhadores das artes do espectáculo não têm um estatuto definido a nível nacional, podendo este variar de acordo com a legislação de cada território ? Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte. O governo britânico exprimiu recentemente o desejo de rever o estatuto laboral dos trabalhadores das artes do espectáculo, tarefa para a qual consultou os sindicatos e as associações profissionais representativas da classe. Na sua página da Internet, o sindicato ?Equity?, entidade que representa cerca de 37 mil artistas e criadores artísticos deste país, acolheu favoravelmente esta intenção mas considera ser necessário criar as bases de uma legislação laboral que proteja de facto os direitos destes trabalhadores, aliada a uma ?aplicação clara e consistente? da lei, sem a qual, diz, a ?dúvida e a inconsistência? continuarão a reinar no sector. As alterações propostas pelo governo britânico estendem-se também ao sistema de pensões. Actualmente, no que toca à reforma, os profissionais do espectáculo podem optar entre um fundo de pensão público ou um fundo de pensão privado, que pode ser descontado para o sindicato ao longo da actividade profissional. Neste âmbito, os sindicatos levantam reservas e dizem que é necessário ter em atenção a especificidade dos profissionais sujeitos a um desgaste físico rápido, como os bailarinos ou os artistas de circo, que, não tendo condições de satisfazer as exigências de um trabalhador normal, correm o risco de, no novo sistema, perderem as suas parcas regalias. Na Áustria, país conhecido pelo seu histórico apoio à criatividade artística, existe, desde 2001, um novo regime de contribuição para os trabalhadores que actuam por conta própria, através do qual o Estado retém 23% do salário anual destinado a cobrir o seguro para saúde, pensão e acidentes pessoais. No entanto, não está previsto qualquer subsídio destinado ao interregno temporário da actividade.
Cenário negro em Portugal
Em Portugal não existe uma Lei de Bases que regulamente a profissão ou sequer uma instituição que emita carteiras profissionais. De acordo com a Plateia - Associação de Profissionais das Artes Cénicas, a convenção de trabalho em vigor, que regula os contratos de trabalho, data de 1986 e está ?completamente desactualizada?, sendo, em geral, ignorada pelo sector. A Plateia defende, por isso, uma legislação de trabalho que possa ser ?realmente aplicável?, definindo um regime que salvaguarde a natureza das artes cénicas e o direito ao tempo de trabalho, à previsão da carga horária, ao regime de descanso obrigatório e compensatório, às regras de trabalho suplementar e aos benefícios daí decorrentes. Mas se é urgente avançar com um estatuto do artista, igualmente importante é a necessidade de adequar a actual legislação fiscal às diferentes categorias profissionais existentes, já que esta não prevê a existência de áreas profissionais específicas (como desenhadores de som e de luz) e não contempla as várias áreas de contacto entre as diferentes artes. Esta disposição é tanto mais importante quanto, recorda a Plateia, ?em muitas profissões das artes cénicas não há distinção entre a dança, o teatro e outras linguagens?. Catarina Martins, actriz do grupo Visões Úteis e presidente da direcção da Plateia, reclama, por tudo isto, a urgência do estabelecimento de um Estatuto dos Profissionais das Artes. A não concretizar-se em breve, corre-se o sério risco de degradar a já de si difícil situação das artes do palco em Portugal e a prolongar a indefinição entre o estatuto amador e o profissional. Desta forma, diz Catarina Martins, não é apenas a dignificação dos trabalhadores do espectáculo que se põe em causa, mas o próprio ?desenvolvimento da área artística no país?. Maria do Céu Ribeiro é actriz e integra o elenco principal da companhia de teatro ?As Boas Raparigas Vão para o Céu, as Más para Todo o Lado?. Há três meses, este grupo do Porto teve de suspender a actividade por falta de liquidez que lhe permitisse assegurar os seus compromissos financeiros. Tudo, porque o concurso de atribuição de subsídios às companhias teatrais do norte do país foi impugnado e a decisão encalhou no tribunal. No mesmo barco estão outras dezenas de grupos, alguns deles com história na cidade, que já ameaçaram fechar as portas até ao final do ano caso o impasse não se resolva. Perante estas e outras indefinições, Céu Ribeiro afirma que é extremamente difícil subsistir e que ?um número crescente de actores vai desistindo?. Mas se nem aqueles que beneficiam do estatuto de companhia subsidiada pelo Estado conseguem sobreviver à crise, que dizer dos trabalhadores precários? Tal como reconheceu Cecília Dias, jovem actriz entrevistada no número de Outubro de A Página, a esmagadora maioria dos jovens actores portugueses pagos a recibo verde não efectua descontos para a segurança social porque o sistema prevê pagamentos mensais para profissões em que não há rendimentos mensais. Nessa medida, a maior parte não tem meios financeiros para assegurar esse compromisso com o Estado. Para além disso, os descontos efectuados não garantem o direito ao subsídio de desemprego, e o cenário afigura-se ainda mais complicado com a entrada em vigor dos novos mínimos mensais de contribuição. ?Perante este cenário, torna-se impossível assumir compromissos como a compra de casa ou, mais simplesmente, assegurar as despesas do dia-a-dia?, referia Cecília Dias. Neste contexto, a Plateia diz ser urgente estabelecer ?um sistema ajustado à realidade profissional que reconheça a intermitência da profissão?, ou, no mínimo, um ?regime de segurança social excepcional? para estes trabalhadores. O Sindicato dos Trabalhadores do Espectáculo (STE) concorda com estas reivindicações e refere que elas têm sido endereçadas ao poder político, nomeadamente à tutela e à própria Assembleia da República. Carmen Santos, coordenadora da direcção do STE, ela própria uma actriz com estatuto precário (ler face a face nas páginas 22 e 23), ressalva, no entanto, que avançar com medidas avulsas iria apenas adiar soluções que são urgentes e agravar a situação. Para resolver os problemas da classe, afirma, ?é necessário um novo edifício e não obras de remendo?.
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