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"Não são as velhas respostas que servirão para responder a problemas novos"

Rui Vieira de Castro, da Universidade do Minho, em entrevista à Página

Professor Associado com Agregação do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho, onde dirige actualmente o Departamento de Metodologias da Educação, Rui Vieira de Castro desenvolve a sua actividade docente nesta universidade em disciplinas da área do ensino do Português em cursos de graduação e pós-graduação.
O seu trabalho de investigação tem elegido como áreas principais o ensino do Português e a educação e literacias. Foi Investigador Responsável dos projectos Estatuto, funções e história do manual escolar (1995-1999) e Promoção do ensino da língua portuguesa em Moçambique: Práticas pedagógicas e materiais curriculares (2001-2005), ambos apoiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
Coordenou, com Licínio Lima, o projecto Literacias em contexto de trabalho, promovido pela Unidade de Educação de Adultos da Universidade do Minho. Foi Membro da equipa do projecto Literacias. Contextos, Práticas, Discursos, coordenado por Maria de Lourdes Dionísio, financiado pela FCT. Actualmente, é Senior Developer do Projecto Staff and Institutional Development for the National University of East Timor, desenvolvido no quadro do Programa ASIA-Link  da Comissão Europeia.
Foi Presidente da Direcção da Associação Portuguesa de Linguística no biénio 1998-2000. Actualmente, é Vogal da Direcção da Sociedade Portuguesa de Didáctica das Línguas e das Literaturas. Foi  também Director, entre 1998 e 2003, da Revista Portuguesa de Educação.
Acaba de publicar, em co-organização com Maria de Lourdes Dionísio, o livro O Português nas escolas. Ensaios sobre a língua e a literatura no Ensino Secundário, da editora Almedina.

O que demonstram os estudos mais recentes sobre literacia em Portugal?

As preocupações com a literacia são relativamente recentes no nosso país. O primeiro estudo extensivo, de âmbito nacional, coordenado por Ana Benavente, data do início da década de 90, mas é essencialmente a partir da divulgação dos resultados do PISA 2000 (Programme for International Student Assessment) que esta questão começa a ganhar relevo.
Este estudo, efectuado junto de jovens dos 15 anos dos países da OCDE e de alguns outros países situados fora desta organização, veio mostrar que, em função dos critérios que foram utilizados, os jovens portugueses ficam colocados numa situação manifestamente preocupante no que se refere a capacidades no domínio da extracção de informação e de interpretação de textos, bem como de avaliação do conteúdo e formato dos textos.
Apesar disto, julgo que em Portugal houve uma leitura demasiado catastrofista destes resultados, passando-se a ideia de que os nossos jovens são incapazes das capacidades de leitura mais básicas. Mas isto não é verdade. Será preciso olhar com alguma cautela para este tipo de dados e não proceder a generalizações apressadas e abusivas. Se tomarmos os resultados dos jovens do 10º ano e os compararmos com a média da OCDE, por exemplo, os jovens portugueses estão acima dessa média.
Depois, há um conjunto de variáveis que aparecem fortemente correlacionadas com o desempenho verificado e que podem ajudar a explicar melhor os resultados obtidos. É o caso, por exemplo, do acesso a bens culturais que aparece positivamente correlacionado com os níveis de desempenho. Os jovens da região de Lisboa e Vale do Tejo tendem a apresentar um desempenho bastante acima dos restantes. Os perfis pessoais dos alunos, com expressão, entre outros aspectos, nas estratégias de estudo, estão também associados aos resultados obtidos.

Mas este resultado parece demonstrar, pelo menos em parte, que a escola não foi capaz de proporcionar a igualdade de acesso a essas competências?

Pessoalmente não acredito que a escola possa compensar aquilo que socialmente foi sendo descompensado. Acredito, porém, no potencial da escola para agir como factor, ainda que limitado, na correcção de desequilíbrios. Nesse sentido, a escola não pode demitir-se da criação de condições que favoreçam a emergência de múltiplas práticas de literacia e, consequentemente, a aquisição e o desenvolvimento dos saberes nela implicados.
É também nesse sentido que se deveria olhar para os resultados do PISA 2000, tentando perceber aquilo que a escola é hoje, perceber se as práticas dominantes estão ou não a funcionar, se estão a produzir outros resultados que não os desejáveis, procurando encontrar aí algumas respostas.
Não me parece, no entanto, que a forma como estes resultados foram sendo apropriados tenha favorecido este tipo de debate.

Paralelamente a estes resultados, os estudos sobre os hábitos de leitura dos jovens portugueses revelam também níveis desanimadores. Como caracterizaria estes hábitos de leitura e que paralelo se pode traçar entre estas duas dimensões?

Um dos aspectos que o PISA tem deixado claro, a par de muitos outros estudos sobre este tema, é que o desempenho dos sujeitos em termos de literacia está fortemente associado às práticas de leitura.
O aparecimento, a partir dos anos noventa, de estudos sobre as práticas e os hábitos e as atitudes de leitura dos portugueses, permitiu-nos ir construindo um retrato mais rigoroso da realidade portuguesa e concluir, por exemplo, que os jovens das faixas etárias entre os dez e os quinze anos apresentam apreciáveis índices de leitura, lendo certamente muito mais do que acontecia  com os jovens do mesmo grupo etário de há trinta anos.
É verdade também, e alguns estudos demonstram a existência de tendências nesse sentido, que à medida que os jovens vão caminhando para a fase adulta se verifica uma quebra nos hábitos de leitura, o que, em parte, se pode explicar pela multiplicação de centros de interesse.
Se considerarmos os grupos etários mais avançados, verifica-se um decréscimo generalizado dos hábitos de leitura, a que não são alheios os baixos índices de escolaridade e o escasso acesso a bens simbólicos. Há que perceber que esta é uma realidade complexa e que existem factores que a explicam. Os adultos portugueses não lêem menos do que aquilo que acontece em outros países por algum tipo de disfuncionamento cognitivo?
Por outro lado, é importante perceber que a nossa é uma realidade muito dinâmica, que existem experiências interessantes em Portugal, nomeadamente a criação e desenvolvimento de redes de leitura pública e de bibliotecas escolares. Medidas deste tipo estão, de facto, a contribuir para a alteração de um estado de coisas  ainda pouco satisfatório.

A leitura como prática transformadora

Muitas vezes considera-se que existe uma leitura erudita e uma leitura popular. A primeira é mais importante do que a segunda? Afinal o importante não é mesmo ler?

Essa questão é interessante, porque nos permite questionar aquilo a que se referem as pessoas quando afirmam que se lê pouco ou que os níveis de leitura não são satisfatórios. A este respeito julgo que predomina um certo discurso de lamentação, com o qual eu não me identifico de todo, que tende a ignorar certas realidades. É o que acontece quando, sem base de sustentação empírica, se afirma que ?hoje já não se lêem os clássicos? ou que ?os jovens de hoje não lêem literatura?.
Em primeiro lugar não é nada seguro afirmar que os clássicos da literatura sejam menos lidos do que eram há uns vinte ou trinta anos. Apesar de a percentagem da população que actualmente frequenta a escola básica e secundária estar ainda muito aquém daquilo que deveria ser aceitável, essa população encontra, pelo menos aí, uma possibilidade de relação com os clássicos.
Por outro lado, este discurso de lamentação implica muitas vezes o menosprezo por determinadas formas de leitura, considerando-as menos significantes ou relevantes, num movimento que com facilidade passa da condenação dos textos à condenação dos sujeitos.
Na minha opinião, devemos ter, na escola e fora dela, uma perspectiva de formação progressiva do leitor, orientada para a instituição do acto de ler como prática significativa, transformadora, em termos pessoais e sociais. Por isso, não sendo defensor, a este propósito, de qualquer relativismo absoluto, não fico, ainda assim, excessivamente preocupado quando vejo jovens ou adultos a ler, por recreação, objectos de ?menor qualidade?. O que me preocupa é saber se aquele é o ponto de chegada ou se estamos num momento de um percurso.

A propósito desta questão, o professor, num estudo desenvolvido em parceria com a sua colega Maria Lourdes Dionísio, refere que perto de metade dos alunos inquiridos discorda ou discorda fortemente da ideia de que foi na escola secundária que adquiriu o prazer da leitura?

Sim. A sensação que transparece, corroborada por alguns estudos neste domínio, é que a escola não estará provavelmente a fazer tudo aquilo que pode ser feito no sentido da formação de leitores. Mais uma vez me parece que seria necessário verificar se as práticas desenvolvidas nas escolas são ou não suficientemente produtivas.
Mas há que ser cauteloso nesta abordagem. Eu trabalho na área da formação de professores desde há muitos anos e tenho encontrado belíssimas experiências, quer no plano individual ? ao nível da sala de aula ? quer no grupo profissional mais imediato, quer nas próprias escolas globalmente consideradas. E há escolas que começam a olhar para as questões da leitura e da literacia como uma área de intervenção decisiva e que desenvolvem práticas quase exemplares.
Mas o dado que refere na sua pergunta não deixa de ser preocupante, porque nos diz que a escola, enquanto espaço privilegiado de formação de leitores, apresenta áreas críticas que suscitam a procura de novos caminhos, de novas soluções.

Considera que essa resposta pode passar pela readequação dos programas escolares e da formação de professores?

Os programas que vigoram desde os anos 90, designadamente no ensino básico, apesar das críticas que se lhes possa fazer, são muito interessantes do ponto de vista da conceptualização das práticas de leitura, da perspectivação do trabalho da escola no domínio da leitura, da ênfase nas dimensões das capacidades, dos conhecimentos, dos saberes, das atitudes? Tudo isso está lá. A verdade é que, mesmo em presença destes aspectos, tal não implica necessariamente práticas similares, dado que aqueles textos são objecto de múltiplas mediações, recontextualizações.
Não podemos cair na ilusão de pensar que a questão pode ser resolvida ao nível do texto programático oficial e que, assegurando isso, as práticas espelharão as orientações oficiais.

Não considera que os programas são, de certa forma, limitadores da acção dos professores?

Quando vemos textos que não só enunciam os objectivos genéricos do trabalho a ser desenvolvido pelos professores, como incluem listagens exaustivas, por domínios, dos conteúdos que devem ser considerados, a enumeração de procedimentos metodológicos, acrescido de informações sobre as práticas de avaliação desejáveis, há uma inferência que é perfeitamente legítima assumir: os programas pretendem regular estritamente as práticas dos professores, supondo que, se assim não for, os professores não serão capazes de os operacionalizar.
Depois, é curioso observar que os programas de Português são praticamente textos de tese. Neste sentido, pode acontecer que um programa de Português do ensino secundário tenha setenta e muitas páginas? Também aqui é uma determinada representação do professor que fica em jogo, como alguém cujos saberes especializados estão, pelo menos, em défice.

Principalmente tendo em conta que a própria ?literatura escolar?, traduzida nos manuais escolares, acaba, muitas vezes, por condicionar mais os professores do que os próprios programas?

Sim, se quisermos encontrar um lugar determinante de regulação das práticas profissionais, designadamente na sua esfera mais didáctica, os manuais são esse lugar.
Os manuais escolares são hoje, não só em Portugal, mas sobretudo no nosso país, um instrumento muito poderoso de regulação das práticas profissionais, e dão, muitas vezes, expressão a orientações divergentes daquelas que se encontram nos programas, nomeadamente no domínio da leitura.
Eu há pouco referia-me à multidimensionalidade da leitura nos planos das capacidades, dos conhecimentos e das atitudes e esta concepção, por exemplo, permeia muito pouco os manuais escolares.

Falta um verdadeiro projecto para a formação de professores

A formação de professores é outro dos vértices que merecia a pena ser abordado na análise desta questão. O professor considera que no âmbito do Processo de Bolonha, por exemplo, se desperdiçou uma boa oportunidade de promover um debate participado e aprofundado sobre o projecto da formação de professores. No seguimento desta opinião, acha que se deveria reequacionar o actual modelo de formação de professores na área do Português?

Eu tenho uma visão crítica sobre a formação de professores. Os cursos de formação de professores tiveram, nas nossas instituições de ensino superior, uma expressão forte durante o tempo em que havia uma grande necessidade de formação de profissionais nesta área.
No entanto, a verdade é que no interior de muitas das nossas universidades este projecto foi sempre visto com alguma reserva. Ou porque não se perspectivava de modo favorável cursos de carácter tão marcadamente profissionalizante, ou porque a sua centralidade afectava a emergência de outras formações. De facto, a formação de professores foi encontrando ao longo do tempo, e ainda hoje encontra, resistências no interior da academia que a vêem como um projecto, no mínimo, discutível.
De alguma forma esta resistência fragilizou os projectos e o necessário questionamento sobre a natureza dos profissionais que se quer formar a partir deles, para que realidade e com que posição perante essa realidade.
Em minha opinião, e na perspectiva de reconversão dos cursos de formação de professores, até por efeito do processo de Bolonha, uma das preocupações que deveria estar presente era a de os tornar naquilo que talvez eles nunca tenham verdadeiramente sido: projectos de ensino com finalidades bem claras, perspectivando perfis de formação coerentes, articulando adequadamente teoria e prática, potenciando as articulações entre as diferentes dimensões da formação ? das áreas da especialidade, da área da educação, da prática pedagógica.
Para que tal seja possível é, no entanto, necessário que as várias estâncias no interior das instituições assumam a formação de professores como um projecto específico.

Mas há outros lugares e outras formas de formação, nomeadamente a contínua?

A formação contínua, também pelas características que foi assumindo e fruto de algumas lógicas que acabaram por predominar no seu âmbito, não foi capaz, na minha opinião, de representar uma alternativa ou complemento efectivo à formação inicial dos professores.
O actual período de retracção que vivemos pode ser um bom momento para repensar também esta área. Falta saber se seremos capazes de fazer prevalecer aquilo que, a meu ver, deve orientar o trabalho nas instituições, ou seja, a preocupação com a formação de profissionais altamente qualificados, e de nos pormos de acordo relativamente ao perfil desses profissionais, fazendo convergir para a sua formação os esforços das várias estruturas que interagem neste campo.

Que pistas gostaria de deixar aos leitores no sentido de aprofundar o debate sobre estas questões? 

Vivemos actualmente em sociedades extremamente complexas, em que o objecto escrito tem um poder enorme ? quer quando estamos colocados na posição de produtores de textos quer quando nos colocamos na de seus receptores. Neste quadro, a escola tem a responsabilidade de, na sua esfera de influência, gerar contextos e práticas de literacia capazes de fundamentar  o exercício de uma cidadania crítica, possibilitando o acesso dos jovens a novos mundos e a novas linguagens, assegurando a possibilidade de, nesse processo, haver lugar para a auto-reconfiguração.
Nesta medida, algo que me parece importante salientar, e encarar como um desafio, é a necessidade de reequacionar a forma como os textos estão na escola, mais até do que a questão dos textos que estão na escola. Neste sentido, acredito ser possível dotar os textos de grande capacidade atractiva para os jovens.
Acima de tudo, porém, não nos podemos esquecer que vivemos hoje num mundo em transformação, também do ponto de vista das práticas e das exigências de literacia. A obrigação da escola é a de, pelo menos, tentar responder a tais transformações, na certeza de que não são as velhas respostas que servirão para responder a problemas novos.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 150
Ano 14, Novembro 2005

Autoria:

Rui Vieira de Castro
Universidade do Minho
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Rui Vieira de Castro
Universidade do Minho
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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