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O caminho certo

Em tempos, quando era garoto, com oito ou nove anos de idade, se tanto, costumava ir todas as noites, de bicicleta, até um cabeço de granito situado em terras de ninguém, muito perto do céu. Sentado na mais alta das pedras, junto a uma árvore velha, com a bicicleta por perto, ficava horas a observar o vale.
Vindo lá de baixo, serpenteando, monte acima, sem um propósito seguro, destacava-se um caminho rural. Lembro-me que me entretinha a adivinhar-lhe o percurso, lá em baixo, ao longe, quando passava por detrás das árvores e das casas que parcialmente o encobriam. O caminho atingia o ponto onde eu estava e seguia. Nunca cheguei a saber exactamente para onde. Também não era isso que me interessava. Os caminhos rurais, toda a gente sabe, não têm fim. O que havia no caminho, e que me fazia pensar, não era o seu fim, mas a forma.
O que ambicionava, lembro-me bem, era poder decifrá-lo; poder perceber por que seriam aqueles e não outros os contornos do caminho. Estariam aquelas curvas bem desenhadas? Seria aquele o percurso ideal, ou poderia ser melhor, se tivesse um traçado diferente? Não sabia, nessa altura, que isso era querer saber muito.
Tive porém a sorte de, com o tempo, depois de muitas horas passadas a vê-lo, me ter sido gradualmente revelada a verdade. Agora sei, sem qualquer hesitação, que aquele era o caminho certo. Não só era como ainda é. Um caminho vê-se bem que é certo se levar muito tempo a construir e resultar dos contributos de muitos: nunca pode ser a grande obra de alguém.
Um caminho certo não tem nada a ver com deliberações ou consensos. Quem o observar com atenção verá que tudo na sua construção é inadvertido e falso; tudo é enleio e desacordo. Nada nele está seguro, nem mesmo as árvores que o ladeiam. Não se passa um dia sem que as ervas sejam pisadas ou arrancadas pelos passantes e sem que as pedras sejam subtraídas aos seus lugares e arremessadas monte abaixo pelos carros, pelo gado ou simplesmente pela chuva e pelo vento.
O caminho certo é, obviamente, de menos, para todos. As perdizes, por exemplo, que no Outono lhe esgaravatam as margens de folhas caídas e sementes, têm de estar sempre alerta. Muitas acabam com um buraco de chumbo na cabeça e atadas com cordéis aos cintos dos caçadores. Também os grilos são forçados, quando o sol nasce, a pararem de cantar e a fingirem, então, que já não têm coração. Ao mais inaudível som que emitam, seja ele qual for, atrairão, vinda do caminho, a desgraça.
A maior parte dos viajantes de caminhos não percebe nada. Muitos gostam de dizer que é errada aquela curva que obriga a contornar, a toda a volta, uma pedra situada mesmo rés a uma escarpa. Mas quem poderá saber a razão por que o caminho a quer assim? Quem saberá o que o terá impedido de seguir por onde parece que seria fácil? Talvez, em tempos idos, os caminhantes ali fossem picados por abelhas que vivessem numa árvore próxima e, hoje, essa árvore já não exista, nem as abelhas; apenas permaneça a curva que os afastava delas. Quem poderá saber? Ninguém. A chave para a compreensão dos mistérios da construção do caminho jaz, inacessível, enterrada na História. 
Outros, sem uma justificação que se perceba, talvez porque são almas simples ou porque não sabem que o caminho é contra, resolvem querer fazer a diferença, construindo-lhe derivações e tentando obstruí-lo com pedras. Tudo em vão. O caminho certo nunca se deixa desenhar. Ele troça dos homens que andam sempre a construir muros e ri-se, particularmente, daqueles que vivem na esperança de conseguirem, um dia, arrancar as máscaras de lua às suas poças de água; não liga ao ladrar falso ou angustiado dos cães e até zomba do tempo, esteja ele limpo ou encoberto.
Se o caminho certo parece morto, engana. O seu sangue é a chuva; a sua voz, o rumor dos viajantes; quem o percorre faz parte dele e quem o evita também. Mesmo aqueles que, no pânico de alguma fuga, o atravessam sem respeito; ou aqueles que lhe ignoram totalmente a proposta, porque cuidam de não usar os caminhos ou simplesmente porque, numa exaltada paixão pela lua, preferem seguir a direito, monte acima, por entre as ervas, mesmo esses, ao desprezá-lo, contribuem para o fazer certo.
Como se resultasse de um pacto perfeito, o caminho certo condiciona a todos e está nas mãos de todos. De todos, Todos, mesmo daqueles que já cá não estão e até dos que ainda hão-de chegar. É certo, porque é o caminho que existe. Embora gostemos de acreditar que o temos, que somos os donos dele, o caminho certo não é nosso. Só é certo porque é de Ninguém.


  
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Edição:

N.º 149
Ano 14, Outubro 2005

Autoria:

Carlos Vasconcelos Lopes
Professor, Braga
Carlos Vasconcelos Lopes
Professor, Braga

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