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Viver a pronto

Crise. Contenção. Recessão. Défice. Um vocabulário cada vez mais popular. De cinto apertado ou de tanga, cada um faz como pode. Sem férias ou com elas por um crédito. Com casa para pagar ou ainda a viver com os pais. Aos saldos ou sem grandes mudanças no guarda-fatos. Na feira ou no hipermercado. Quisemos saber como andam as famílias a gerir o orçamento de que dispõem.

 Onde gastam, como poupam. Como vivem, a pronto ou a crédito?

Véspera de múltiplos jackpots do Euromilhões. O prémio: 96 milhões de euros. Até à hora do almoço os portugueses tinham gasto mais de 30 milhões de euros em apostas. Três euros por habitante.
Marta Oliveira, 28 anos, tem sonhos depositados num desses boletins. É engenheira informática, mas se a sorte lhe bater à porta troca os computadores por um negócio próprio: ?Abria o maior horto do norte, ?quiçá? do país?, graceja. Mas antes de realizar esse sonho, impunha-se um investimento prioritário na liquidação do crédito contraído para a compra da ?sua? casa.
Não é um desejo original. Os empréstimos pedidos para compra de casa em Portugal não param de crescer quase 11 por cento ao ano. Uma despesa que representa 32 por cento dos salários das famílias portuguesas.
Dito de outra forma, o pagamento anual de um crédito para uma habitação média equivale a nove salários brutos individuais em Portugal. No Reino Unido, o número fica-se pelos sete salários e em Espanha pelos sete salários e meio. A média na União Europeia é de cinco. Os dados constam de um estudo do Banco Bilbao Vizcaya Argentina, apresentado em Abril deste ano.

Crédito ?na medida correcta?

Subtraída a prestação do empréstimo da casa, o salário de Sandrina Araújo aguenta o pagamento das despesas de água, luz, telemóvel, condomínio e alimentação, ?mas não dá para muito mais?.
?Se não fosse a ajuda dos meus pais, dificilmente conseguiria suportar certos luxos como ter Internet e TV por cabo, ir ao cinema, ao teatro ou mesmo viajar.? A ajuda paterna diminui algumas contrariedades que ainda assim obrigam a uma contabilidade bastante organizada.
?No início do mês vejo quanto dinheiro tenho na conta e deduzo o valor das facturas. Depois sobre o dinheiro que me resta defino um valor máximo a gastar por dia.? Mas nem sempre o resultado é o previsto. ?O salário não estica e, por vezes, é difícil não ultrapassar esse limite?, lamenta Sandrina. Quando surgem despesas inesperadas, a solução passa ora por um desfalque na poupança ? tão querida às férias ? ou o recurso ao cartão de crédito ?na medida correcta?, esclarece.
Marta Oliveira, nem quer ouvir falar de férias. ?Desde que decidi comprar casa deixei de ter vida!?, afirma. As férias são passadas em casa. Já ouviu falar no recurso ao crédito para viajar, mas é algo impensável para Marta. Mesmo que a entristeça um pouco o facto de nunca ter andado de avião.
Fora o empréstimo que contraiu para a compra de habitação, tudo o mais é comprado a pronto. ?Ou tenho dinheiro ou não compro!? Os gastos são, no momento, quase todos relacionados com a manutenção e recheio da casa. ?Raramente compro roupa, talvez o faça duas vezes ao ano, e por hábito nos saldos, ou em lojas baratas?, esclarece.
Para ter uma contabilidade menos periclitante, Marta estima que 250 a 300 euros a mais por mês, livres de impostos, seriam suficientes para satisfazer todas as suas necessidades. ?Um ordenado de 1500 euros seria o justo na minha área? ? mas ?  ?isso seria uma miragem?.
Não será a única a pensar assim. De facto, o custo de uma hora de trabalho em Portugal é dos mais baixos da Europa, excluindo a de Leste situando-se nos 6.73 euros. A mesma hora em Espanha e Itália custa mais do dobro, 14.94 euros; na França, 21.53 euros; na Bélgica, 28 euros; na Alemanha, 30.86 euros; nos EUA, 21.53 euros e na Grécia, país geralmente mais nivelado por Portugal, o custo é de 11.23 euros. A análise é do site The Economist.

Morar com os pais

É por ?essas e por outras? que Jorge Coimbra, 30 anos e o seu amigo Nuno Couto, 29 anos, continuam a morar com os pais.
?Se ganhasse 1250 euros?, sonha Jorge? ?Tudo seria diferente, pensava em comprar casa própria e ter uma vida independente.? Algo que os 300 e poucos euros ganhos como empregado de hotel não lhe permitem fazer. E por isso, as despesas assumem um cariz mais pessoal: ?Roupa, às vezes comprada na feira, livros, saídas com os amigos e gasolina.?
Poucos gastos extras causam mossa no orçamento de Jorge. ?A não ser??, começa Nuno, incitando o amigo a admitir o seu mais recente ?crime?. Jorge desmancha-se a rir. ?Comprei este mês a colecção de DVDs do MacGyver?, acaba por confessar. Uns 70 euros ?investidos? na série que marcou a sua adolescência. Episódios que relatam as aventuras de um agente secreto, ao serviço do governo americano que, ao contrário de todos os outros, odeia armas e recorre a ferramentas pouco convencionais para se defender em situações de risco.
Não sendo o MacGyver, as peripécias de Nuno, operador de call center, para lutar contra as despesas do dia-a-dia são contudo dignas de relato. ?Vou ao café com os meus amigos mas não tomo, nunca tomei, e feitas as contas são uns 70 cêntimos que poupo?? E acrescenta: ?Fumar, só o fumo dos cigarros dos outros!?.
Um pouco mais a sério, porque em tempos de crise não se brinca com dinheiro, Nuno explica que a sua maior despesa têm sido as propinas da universidade privada que frequenta. Uma sobrecarga cujo fim está, contudo, à vista. ?Acabo este ano o curso!?, confessa aliviado.
Entretanto, Nuno não vai deixar de recorrer às habituais regras de contenção de custos. ?Utilizo os transportes públicos para ir trabalhar, procuro os sítios mais baratos para almoçar (ou vou a casa), evito ir a livrarias e lojas de CDs para não cair em tentação, como o Jorge??, lembra sem conter as gargalhadas. E de volta à ironia, porque tristezas não pagam dívidas, Nuno esclarece: ?Só não faço downloads de filmes e de CDs da Internet para poupar dinheiro porque isso é ilegal!?
Sobre o salário que ganha, ?o dobro? ? garante ? seria a quantia ?justa?. Mas enquanto espera por justiça, a balança vai pesando mais para o lado do menos. E na hora de pensar o que deixa de fazer por falta de numerário a resposta é rápida: ?Tudo e mais alguma coisa!? Da lista inumerável, as férias, são aquilo de que sente mais falta. ?Se me saísse o Euromilhões, era já a seguir!?

Poucos vícios...

?Quem não tem dinheiro, não tem vícios?, o repto não é novo, mas se seguido à letra é eficaz, garante Firmino Ribeiro de 64 anos, aposentado.
Foi por este princípio que Firmino sempre pautou a sua conduta. Agora pode dar-se ao consolo de dizer que ?tem uma vida estabilizada?. O dinheiro da reforma chega para si e a ?patroa?. ?Os filhos já estão criados, os netos têm os pais para tomar conta das suas despesas?, advoga. Tal como ele próprio fez lutando para que nada lhes faltasse. E sem nunca recorrer ao crédito bancário. Facto de que se orgulha bastante. ?Acho mal as pessoas pedirem dinheiro ao banco por tudo e por nada?, diz, ?é sinal que estão a gastar mais do que devem?.
José Morais, 54 anos ainda faz contas à vida pela família completa. Para sua grande alegria, as duas filhas já adultas ?não estão com pressa para sair de casa?. Há três anos, José Morais percebeu que um só emprego, o de massagista profissional, não chegava para fazer face às despesas e procurou mais um. Começou a trabalhar como auxiliar de acção educativa. Apesar dos dois empregos, José Morais é peremptório: ?O dinheiro não é suficiente!?. O orçamento é canalizado para o pagamento da prestação da casa, a alimentação da família, as despesas de manutenção e utilização do carro que, contudo, ?já foi totalmente pago ao banco?.
Dificuldades que, no entender de José Morais, seriam suprimidas caso ganhasse um pouco mais que mil euros por mês. ?Não que deixe de fazer muita coisa por falta de dinheiro?, diz. E desdramatiza: ?Não posso ir de férias para o Brasil, vou para a aldeia?. ?O essencial é ter dinheiro para pagar a pronto as pequenas coisas do dia-a-dia?. Como o novo televisor que vai ter de comprar para substituir o de casa prestes a avariar. 

? e alguma poupança

Poupar por poupar, ou para gastar, essa é a dúvida. ?Ser poupado está na minha natureza e também na das minhas filhas, pois esse foi um ensinamento que sempre lhes transmiti?, orgulha-se José Morais.
A poupança continua a ser a melhor arma para apaziguar os momentos de crise. ?Na medida do possível?, Sandrina Araújo também poupa. ?Apesar de ganhar pouco gosto muito de viajar e tento sempre por algum dinheiro de lado para me mimar uma vez por ano?. Há ainda que contar com as despesas inesperadas de saúde. ?Como não tenho seguro, nem tempo disponível para passar a manhã ou a tarde inteira no Centro de Saúde, ir ao médico acaba sempre por ficar caro.?
Preocupações destas já não abalam Firmino. ?Sei que o dinheiro da reforma vem certinho e àquele dia não falha?. A excepção confirma a regra. A crise lá vai tocando a todos em diferentes proporções. Mas hoje é dia de esquecer as preocupações. Cinco números e duas estrelas. Enquanto a chave não é sorteada a esperança não se apaga. E que venham daí esses euros, se possível, aos milhões!


  
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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