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"É preciso recuperar o tempo perdido"

Património cerâmico e azulejar portuense ao abandono

Guilherme Teixeira é um apaixonado pela cerâmica em geral e, particularmente, pela cerâmica e azulejaria antiga produzida no Porto. Começou a sua formação em 1986 através de um curso técnico-profissional e desde aí não parou de desenvolver o seu interesse, trabalhando como técnico de conservação e restauro em diversos locais do pais e do estrangeiro.
Preocupado pela crescente degradação deste património da cidade, este ceramista de 41 anos quer desenvolver um projecto de salvaguarda e recuperação dos exemplares ainda remanescentes. Na sua opinião, a escola pode ter um importante papel a desempenhar neste processo. Explica porquê nesta conversa.

Em que contexto surge a indústria de azulejaria no Porto e qual a sua importância no contexto da produção de cerâmica nacional?

A indústria de azulejaria portuense surge a partir de meados do século XVIII, altura em que as antigas olarias começam a transformar gradualmente as suas práticas através da introdução de novas tecnologias, nomeadamente do uso de faiança branca, dos fornos e das prensas. Num espaço de 30 a 40 anos surgem quatro grandes fábricas que marcam a produção da cerâmica portuense daquela época, denominadas por ?Faianças Portuenses?.
Após este primeiro período de crescimento, entram em decadência após as invasões francesas, seguindo-se um novo recrudescimento desta indústria na cidade após as guerras liberais, que atravessa todo o século XIX e princípios do século XX.
Foi um período florescente e produtivo, durante o qual se verificavam transferências de mestres ceramistas entre as diferentes fábricas ou o estabelecimento por conta própria de alguns deles. Por volta de 1927 dá-se o início da extinção das principais fábricas de cerâmica do Porto e de Vila Nova de Gaia ? concelho onde já se localizava a maioria delas.
A azulejaria da cidade tinha uma estética muito própria, em particular no que se refere aos azulejos relevados, sendo possível identificar actualmente, em certas cidades brasileiras e em Lisboa, por exemplo, os azulejos que eram fabricados no Porto.

Que razões estiveram por trás da decadência desta indústria?

Eu diria que se deveu ao gradual desuso da cerâmica na construção de edifícios, consequência dos gostos e das marcas da época, à influência da oferta proveniente do estrangeiro e ao facto de esta indústria não se ter adaptado às mudanças.
Esta decadência é visível ainda hoje através do mau uso dado às cerâmicas na construção de novos edifícios ? como é o caso da Faculdade de Letras do Porto, que tem apenas quinze anos de existência mas cuja degradação do revestimento exterior é acentuada ?, mostrando que a cerâmica já não entra nos parâmetros de trabalho de qualidade de alguns sectores da construção civil.

Quais são as vantagens da utilização do azulejo no revestimento dos edifícios?

O azulejo, tal como qualquer revestimento cerâmico, tem um conjunto de qualidades estéticas e técnicas que fazem dele um material de eleição: é altamente luminoso ? porque reflecte a luz ?, é decorativo, é impermeável e auto-lavável.
No caso da cerâmica portuense, a troca de saberes entre as diversas fábricas criou um estilo e uma gramática estética muito próprias, que tornaria possível a sua recuperação através de uma linguagem actual no contexto de uma tradição muito prestigiada.

Julgo que tem um projecto que pretende recuperar essa tradição numa perspectiva contemporânea. Pode falar-nos um pouco acerca dele?

O meu projecto passa por reinserir a produção de cerâmica, e nomeadamente da azulejaria, visto que poderia constituir uma grande aposta em termos turísticos e na própria imagem da cidade.
Depois de um período em que o património edificado do Porto esteve ao abandono, assiste-se actualmente a um reinvestimento na recuperação dos edifícios antigos. Porém, o revestimento azulejar tradicional é banido para dar lugar a paredes pintadas de branco ou de amarelo-ocre. Os azulejos, alguns deles centenários, são atulhados, esquecidos ou deitados fora, sem qualquer controlo por parte das entidades competentes.
A minha ideia é incentivar as entidades competentes a criarem um conjunto de regras que proteja este património e reponha aquele que já se perdeu, o que implicaria a produção de réplicas. No caso da cidade do Porto, esse trabalho está geograficamente muito disseminado.
Este factor, aliado ao facto de o restauro, a conservação e a produção de réplicas serem áreas com parâmetros de trabalho relativamente definidos e de muitas escolas do Porto estarem equipadas com fornos de pouco ou nenhum uso, poderia potenciar a participação das escolas neste processo, nomeadamente ao nível de saídas profissionais.
Estudar a réplica de um azulejo, ou de um conjunto de azulejos, pode ser uma actividade interdisciplinar interessante do ponto de vista educativo, abarcando áreas como a história, o desenho, a matemática, a química e a física.

Está a tentar dizer, então, que a escola poderia beneficiar desse trabalho garantindo saídas profissionais aos alunos como assumir um papel importante na formação de uma consciência que alerte para a necessidade de se preservar esse património...

Sim. Eu julgo que a formação para a salvaguarda do património, em particular o da cidade do Porto, deveria constituir uma preocupação de toda a comunidade, podendo a escola constituir um excelente local para a divulgação de um projecto desta natureza.
Acredito que se os mais jovens estiverem informados acerca da sua importância e o associarem a uma perspectiva histórica do nosso passado, isso os levaria a repensar certas atitudes de destruição gratuita e de menosprezo em relação ao que habitualmente é encarado como ?velho?.
Além disso, a reabilitação deste património poderia constituir uma saída profissional para aqueles jovens que têm tendência para as artes e não se identificam com as saídas profissionais postas habitualmente à disposição no mercado de trabalho, criando um conjunto de recursos humanos capazes de intervir com qualidade nesta área.

Que apoios tem para desenvolver  este projecto?

Eu tento limitar o meu papel à divulgação, mas tenho contactado instituições públicas e privadas como a Câmara Municipal do Porto, a Universidade Portucalense, o Museu Nacional de Soares dos Reis, um banco privado que actua habitualmente como mecenas cultural, entre outras.

Que receptividade tem obtido?

A receptividade a esta ideia tem sido boa, porque a maioria das pessoas que eu contacto retém na memória uma cidade repleta de cerâmica, entre azulejos, estátuas vidradas, telhas de beiral decoradas ? estas últimas muito exclusivas da cidade, mas pouco estudadas e sobre as quais existem poucas referências. Neste campo há um trabalho enorme a fazer. A questão é que esse material é em tão grande quantidade e tamanha diversidade que merecia um estudo aprofundado e apoio a diversos níveis.
Das conversas que vou mantendo, julgo que as pessoas apercebem-se da necessidade de conservar todo este património e sinto que nelas existe um brio e um amor muito próprio à imagem que têm das ruas da nossa cidade. Depois, é preciso não esquecer que o desenvolvimento de um projecto desta natureza à escala concelhia poderia abrir perspectivas de não só se reabilitar a área da cerâmica como uma indústria representativa da cidade como implicar a criação de postos de trabalho e a promoção turística.

Que fazer com o espólio proveniente das antigas manufacturas proveniente desta região? Há alguma entidade que cuide desse património ou essa tarefa está dependente da iniciativa de particulares?

Julgo que tudo deveria começar por um debate público onde se apresentem propostas viáveis e realistas. É preciso não esquecer que se trata de um património público que perde o seu valor se for deslocado do local original. O mais importante, no entanto, será mesmo salvar o mais que se possa e no mais curto espaço de tempo possível, porque tem-se destruído muito e perdido mais ainda. É preciso recuperar o tempo perdido.

Ao que julgo saber, tem também a ideia de criar um museu virtual dedicado a esta área...

Sim. A ideia é criar um ?Museu das Faianças Portuenses? na Internet, um espaço que centralizasse informações e funcionasse com os contributos de ceramistas e de historiadores. Mas para isso é indispensável garantir o apoio de um mecenas que se interesse por este projecto.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

Guilherme Teixeira

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Guilherme Teixeira

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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