Página  >  Edições  >  N.º 145  >  Bordando a vida

Bordando a vida

A cultura deixou de ser singular para ser múltipla. Hoje falamos em culturas, e isso acontece por causa tanto de mudanças sociais ocorridas nas quais têm papel importante os novos movimentos sociais (de mulheres, de afro-descendentes, de homossexuais, dos sem-terra, etc.), como de novas teorias explicativas que se fizeram necessárias para dar conta dessas novas realidades vividas. Se na modernidade bastava à hegemonia de um modelo cultural que padronizava e a tudo explicava, com o que vem sendo chamado de pós-modernidade se instala a complexidade dos sujeitos e das culturas e a necessidade de variedade nos sistemas políticos, nas instituições etc.
Em uma sociedade marcadamente separada por classes sociais, a cultura é o lugar onde o diferente encontra espaço. A divisão social do trabalho implica em classificar os que têm cultura e os que não têm, dentro de uma perspectiva da cultura dominante. Outra divisão que ocorre é sobre o tipo de trabalho: o científico, destinado às classes sociais privilegiadas e o manual que se diz característico das classes populares com seus saberes específicos do ponto de vista de um pequeno grupo. Essa divisão vem sendo notada e estudada na tentativa de compreender quem somos, na busca de caracterizar as múltiplas identidades de que somos formados.
Nos movimentos de todas as práticas sociais, vão surgindo artes e modos de ser presente no mundo em meio a tensões diversas nas relações complexas que se estabelecem entre os seres humanos. Nesses contatos, ao lado de processos de segregação, aparecem processos diversos de hibridação(1)  entre os diversos setores sociais e seus sistemas simbólicos.
A partir das experiências incorporadas, com uma discussão das transformações culturais, sociais e econômicas ocorridas em meados do século XX, quando a globalização, que foi criando novas normas na maneira de viver e transmitir valores, levando-nos à padronização dominante, neste início do século XXI, vai se percebendo a tentativa de fuga dessa padronização, de outras possibilidades de entrar no mercado de trabalho, mesmo que seja o informal, e a busca e compreensão das identidades múltiplas se fazem presentes através de relatos, testemunhos culturais e estudos cada vez mais aprofundados de expressão cultural cotidiana.
É nessa tentativa de fuga da padronização que o conceito de hibridação é útil, pois possibilita perceber e utilizar termos como mestiçagem para descrever as fusões raciais ou étnicas, o sincretismo de crenças e perceber a mistura entre o artesanal e o industrial, o culto e o popular, o escrito e o visual nas mensagens midiáticas, segundo Canclini.
Dessa maneira, a cultura popular que hoje vem aparecendo como uma força econômica, na medida que começou a gerar empregos, com mulheres que se juntam em cooperativas para costurar, bordar ? e sempre conversar ? permite a venda dos produtos de seu trabalhos para industriais da moda e até mesmo exportando. Crescentemente, o uso dessa cultura vai atraindo o interesse de turistas, gerando trabalho direto e indireto à população, contribuindo mesmo para diminuir o êxodo para os grandes centros urbanos e a miséria da população.
Para além desses aspectos, essas atividades têm permitido que os seres humanos neles envolvidos, em especial as mulheres, se interessem por solidificar suas histórias, suas marcas, suas referências personalizadas, o que fica difícil em produtos industrializados. Ao usar a agulha, essas mulheres marcam no tecido seu olhar de vida, alegre ou cansado - sua emoção vai escrevendo o cotidiano, o real e o imaginário.
No Brasil, movimentos diversos vêm se fortalecendo no uso de bordados também em  ilustrações de livros voltados para o público infantil e adolescente. O bordado deixou de ser peça de decoração, passando a ser uma linguagem visual, na qual ficam registrados palavras, sentimentos, marcas geográficas e históricas. Este fato, tem trazido estímulo ao uso desse recurso na escola, através de experiências que vêm permitindo às professoras recuperar essa atividade, que já foi `matéria? obrigatória em escolas responsáveis pela educação de meninas, no século XIX e inícios do XX, pela incorporação de trabalhos usando o bordado em atividades pedagógicas, já agora para meninos e meninas.

1) Hibridação - processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas (CANCLINI, 2003: XIX).


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 145
Ano 14, Maio 2005

Autoria:

Claudia Regina Ribeiro Pinheiro das Chagas
Grupo de Pesquisa Redes de Saberes - Educação e Comunicação, Questão de Cidadania - Univ. do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Claudia Regina Ribeiro Pinheiro das Chagas
Grupo de Pesquisa Redes de Saberes - Educação e Comunicação, Questão de Cidadania - Univ. do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo