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O currículo é um saber que se constrói diariamente e a partir do interior da escola

As tecnologias presentes no quotidiano, como a televisão e a Internet, contribuíram nos últimos anos para redefinir o papel do professor e tecem hoje redes de conhecimento que desempenham um papel primordial na redistribuição do saber. A escola, enquanto local privilegiado do cruzamento destas redes de conhecimento, vê hoje o currículo ser condicionado por esta nova dimensão e redesenhado a partir do seu próprio interior. Resta saber o que estas transformações podem trazer de novo ao futuro da educação.
Estas são algumas das ideias-chave da entrevista que A Página conduziu junto de Nilda Alves, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ e colaboradora do nosso jornal desde há cerca de quatro anos com a rubrica ?Fora da Escola também se aprende?.
Nascida no Rio de Janeiro, em 1942, Nilda Alves inicia a sua carreira como professora primária em 1962 e quatro anos mais tarde torna-se professora do ensino secundário, leccionando a disciplina de Geografia até 1990. Ao mesmo tempo, inicia a sua carreira de professora universitária na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense em 1983, prolongando a sua actividade até 1995, ano que se aposenta. A partir dessa altura torna-se professora titular da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), cargo que desempenha até hoje.
Investigadora da área do currículo, trabalha na formação de professores nos domínios da tecnologia e educação, imagem e som. É coordenadora do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da UERJ, membro do Conselho Universitário da UERJ e membro do Conselho Consultivo da Associação de Docentes da UERJ.
Nilda Alves foi também presidente da ANPED (Associação Nacional de Pós-graduação e pesquisa em Educação) em dois mandatos ? entre 1999 e 2001 e de 2001 a 2003 ? e da ANFOPE (Associação Nacional pela Formação dos profissionais da Educação) entre 1990 e 1991.
Tem um grande número de artigos publicados em revistas nacionais e internacionais e é autora de dezenas de livros, tendo organizado, entre outras, as colecções ?Metodologia da pesquisa em educação? e ?O sentido da escola? (com Regina Leite Garcia), na editora brasileira D,P&A, e ?Cultura, memória e currículo?, na também brasileira Cortez.

Coordena, enquanto investigadora, o ?Grupo de Pesquisa em Redes de Conhecimento em Educação e Comunicação: Questão de Cidadania?. Quais são os objectivos deste grupo e quem o integra?

O grupo é constituído sobretudo por alunos de mestrado e de doutoramento, mas nele integram-se também outras pessoas interessadas em discutir e trabalhar as questões da educação na perspectiva das redes de conhecimento. É um debate que assenta fundamentalmente em torno da questão do uso das tecnologias em educação, como são trabalhadas, de que forma são acessíveis e determinam a relação com outras pessoas através delas, de que maneira as escolas absorvem estas tecnologias no seu quotidiano, etc.
Contrariamente ao que é habitualmente afirmado, o grupo parte da convicção de que as tecnologias estão presentes no quotidiano do trabalho dos professores, quer estes utilizem ou não essas tecnologias, quer tenham ou não acesso a elas. O facto é que elas existem e jogam um papel muito importante na distribuição do conhecimento. O que é necessário é compreender o porquê de elas nem sempre serem conhecidas e utilizadas pelos professores.
A televisão é um bom exemplo disso. Ela está presente no quotidiano da escola e muitas vezes diz-se que o professor não faz uso dela. Mas o professor utiliza-a, quanto mais não seja fora da escola, enquanto telespectador. E a rede de conhecimentos proporcionada pela televisão circula, de alguma maneira, pelo quotidiano da escola.

Pensa que as tecnologias podem redefinir o papel do professor tal como o conhecemos?

Eu acho que elas já redefiniram esse papel. O meu trabalho tem incidido precisamente sobre a ideia do ?docente colectivo?, ou seja, de que as múltiplas referências presentes nessas redes de conhecimento, nas quais estamos envolvidos, estão, de facto, presentes no interior da sala de aula e redefinem o papel do professor enquanto detentor do conhecimento, tornando-o em alguém que participa de um diálogo mais amplo do que o próprio conhecimento que ele ajuda a transmitir.

Foi presidente da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (www.anped.org.br) em duas ocasiões, entre 1999 e 2001 e 2001 e 2003. Qual é a finalidade desta associação e que actividades a caracterizam?

A ANPED surge, antes de mais, como entidade organizadora dos cursos de pós-graduação em educação no Brasil e como resposta a uma necessidade de intercâmbio de determinados tipos de conhecimento sentida pelos professores deste grau de ensino, assumindo um papel de charneira na congregação de investigadores desta área. Daí que ela se constitua como uma associação onde estejam presentes sócios institucionais ? os cursos de pós-graduação ? e sócios individuais, representados na figura dos investigadores.
Devo também referir que a ANPED teve, desde a sua constituição, um papel político significativo no período pós-ditadura, particularmente no período da reorganização institucional do Brasil, tendo estado no centro da discussão da Constituição brasileira e da Lei de Directrizes de Base, que regula o sistema educativo do país, transformando-se num importante espaço de influência no respectivo campo de acção.

A existência de instituições congéneres da ANPED facilitaria com certeza a troca de informação a nível internacional no domínio da educação. Conhece instituições similares noutros países?

Sem dúvida que potenciaria esse intercâmbio, mas não conheço nenhuma instituição com as mesmas características em outros países. Aqui em Portugal existe a Associação Portuguesa de Ciências da Educação ? no âmbito da qual eu já fui convidada a participar num encontro ?, mas tem uma estrutura e uma organização menos consistentes.
Ao longo da sua existência, a ANPED foi constituindo grupos de trabalho em diversas áreas das ciências da educação que hoje reúnem 23 fóruns de discussão dedicados a temas tão variados como o ensino básico, política do ensino superior, a história e a filosofia da educação, o currículo, a comunicação e a educação, o trabalho e a educação, entre outros. Os mais recentes dedicam-se à questão do género e educação, à educação ambiental e, também na perspectiva educativa, à condição dos afro-descendentes.

Construir o currículo a partir do quotidiano escolar

Um dos muitos livros que coordenou intitula-se ?Criar currículo no Quotidiano?. Quer explicar-nos melhor o que significa esta ideia?

O nosso grupo de investigação parte da ideia de que o currículo não se resume àquilo que é determinado pela via oficial. Na verdade, existem elementos que se reflectem na prática quotidiana da escola, na qual participam sobretudo professores e alunos, mas também outros actores da comunidade educativa, e que ajudam a construir aquilo que denominamos por currículo praticado.
Consideramos, nesse sentido, que para se entender o conceito de currículo é preciso ter em atenção a forma como esses processos se desenrolam na prática. É no espaço-tempo da escola que se desenha o currículo, através de acordos e mudanças que é necessário rever quase quotidianamente, e não através de determinações legais.

Em Portugal, o ensino básico é formado por um número pré-determinado de disciplinas curriculares obrigatórias, comuns a todos os alunos. Mas o facto é que estes têm uma origem social e cultural cada vez mais diversa e diferentes interesses. Alguns dizem que esta rigidez curricular é um dos responsáveis pelo insucesso escolar e pela descrença dos alunos em relação à escola. Qual é a sua opinião sobre o currículo e sua relação com a diversidade dos alunos?

Na medida em que trabalhamos sob a perspectiva dos currículos praticados, partimos justamente do princípio de que eles sofrem a influência daqueles que o trabalham na prática, ou seja, de toda a comunidade escolar. E essa influência é determinada pelas múltiplas redes de conhecimento em que nos inserimos. São elas que, na sua relação com a escola, transferem a dimensão do real para o currículo.
Por outro lado, está também presente nessa dimensão o currículo oficial, que detém o poder institucional, que tende a ser genérico e a ignorar essas especificidades, procurando ensinar tudo a todos, da mesma maneira. A ideia desta possibilidade, que acompanha a escola desde a sua fundação, ainda é entendida actualmente como base para o desenho curricular.
Hoje em dia o confronto entre estas duas perspectivas acentua-se. Embora no Brasil existam directrizes curriculares nacionais ? no anterior governo de Fernando Henrique Cardoso foram inclusivamente postos em prática os chamados Parâmetros Curriculares Nacionais, que tinham um carácter mais centralizador ?, os Estados e os próprios municípios têm uma grande autonomia curricular e não há, na prática, um currículo único para todos os alunos. Precisamente porque lá trabalha-se com a ideia de que existem diferenças entre os alunos e que, nesse sentido, o currículo precisa de se adaptar à realidade local.
Gostaria de sublinhar, no entanto, que considero a tónica posta na valorização da diferença curricular ainda pouco desenvolvida no que se refere à formação dos professores, porque também eles têm origens sociais, culturais e crenças diferentes. Os professores são formados sob os mesmos modelos, mas isso não corresponde à forma como têm de lidar com as diferenças no seu quotidiano. Esta é uma questão ainda pouco abordada na formação dos professores.

Perante a necessidade de encarar essa diversidade, como vê hoje a formação dos professores?

Há ainda poucos investigadores que trabalham sobre a ideia de que o professor deve ser o elemento central do processo educativo, e essa é uma marca que advém não só do início da história da escola mas que decorre também da intervenção dos movimentos renovadores, que centralizaram nos alunos a necessidade do debate. Na minha opinião, discute-se de uma forma pouco realista a formação de professores, centrando-a nos perfis e na forma como ela deve ser orientada, mas não em como ele é, o que ele sabe ou em que redes de conhecimento está envolvido.

Como encara a própria classe a necessidade de transformação face a esse contexto que acabou de referir?

Pessoalmente, sempre trabalhei com a convicção de que devíamos acompanhar mais de perto o desenvolvimento dos cursos de formação de professores. Muitos estudos comprovam que a maioria deles é estruturado com base num receituário e muito pouco com base na própria experiência prática dos alunos de formação.
Um exemplo disso é o facto de a maior parte dos alunos de formação de professores recorrerem à Internet para elaborar os seus trabalhos, e fazerem-no, como nós dizemos, através do ?copia e cola?. O que sucede habitualmente nestas situações é eles serem reprovados ou terem, quanto muito, uma segunda oportunidade, ao invés de se assumir que, hoje em dia, a rede (Internet) é ela própria um lugar de conhecimento.
Na minha opinião, esta é uma questão fundamental e deveria aprofundar-se a forma como se trabalha a formação de professores tendo em conta essa nova dimensão. Porque o aluno de hoje é o professor de amanhã. De que forma vão eles trabalhar esta questão com os seus futuros alunos na sala de aula?
Outra das dimensões fundamentais é a forma como se podem construir caminhos comuns na formação. Ao contrário do que se afirma, hoje já não estão presentes os caminhos individuais e um dos grandes desafios do professor é a forma como ele pode organizar comunidades a partir desses caminhos comuns.

Na sua opinião, quais são os principais desafios que se colocam à educação nos dias de hoje?

Eu penso que um dos principais desafios passa por entender o destino comum das crianças e dos jovens no mundo e perceber que existem hoje instrumentos que nos permitem trabalhar com esse difícil destino comum.

Não considera que o crescente fosso educativo entre países ricos e países pobres pode ser entendido como um dos principais desafios? Afinal, se alguns países se preocupam hoje com a universalização do ensino básico, outros pensam já na forma como hão-de generalizar o acesso às novas tecnologias?

Sim, mas essa diferença já existia anteriormente, e não considero, ainda assim, que essa relação seja directamente proporcional a países ricos e pobres. A crise cultural que existe nos Estados Unidos actualmente, por exemplo, é muito violenta. Muitas pessoas têm acesso ao ensino e às actividades culturais, mas nem por isso são necessariamente cultas.

E relativamente ao contexto brasileiro e latino-americano: que desafios considera serem prioritários enfrentar no futuro próximo?

Eu trabalho essencialmente com o quotidiano das escolas e confesso que tenho uma certa dificuldade em generalizar a minha opinião relativamente a estas matérias, mas não tenho, globalmente, uma visão pessimista. Interessam-me sobretudo os caminhos que os professores vão criando para dar resposta às dificuldades sentidas no seu quotidiano escolar, e eles, de facto, existem. Não podemos afirmar que a falta de soluções verificadas em algumas escolas dos países centrais sejam válidas para os países da periferia, porque estes sempre viveram com dificuldades e tiveram de arranjar saídas para elas.

Aprender fora da escola

Como encara a relação entre a escola e a universidade? Que lugar ocupa aí o campo económico?

Em penso que essa última questão deve ser colocada sobretudo em função do papel que as empresas da área da indústria, comércio e dos serviços desempenham hoje com a constituição de redes paralelas na área da formação. Essa dimensão está presente e é muito forte no Brasil.
Desde sempre se verificou um desfasamento entre as necessidades do sector económico e a oferta da escola porque o processo de adaptação desta última à realidade social é mais lento. Mas a questão que devemos colocar-nos é se a escola será o local mais adequado para esse tipo de formação.
Na minha opinião, a escola deve procurar corresponder às solicitações de cariz sócio-económico, mas sobretudo assumir a sua principal função, que desde sempre foi, e hoje em dia mais do que nunca, constituir-se num tempo e num espaço de aprendizagem e de socialização para crianças e jovens (e no meu país de uma forma crescente para adultos também). É um tempo espaço em que as pessoas compreendem que podem trocar opiniões, discutir e aprender.

E quanto à relação entre a escola e a universidade: elas estão de costas voltadas?

De facto, esse contacto sempre foi precário. Penso que a universidade sempre foi vista como um lugar de saber maior, mais importante, e a escola, pelo contrário, como um local onde os professores vão apenas ensinar. E essa imagem permanece até hoje. Apesar disso, há situações onde esta relação se inverte. A Sociedade Brasileira para o Progresso das Ciências, por exemplo, desenvolve desde há alguns anos um programa muito interessante, chamado ?A ciência vai à escola?, que, como o próprio nome indica, pretende quebrar essa relação unívoca.
Concordo com o Boaventura de Sousa Santos quando ele defende a necessidade de se proceder a uma segunda ruptura epistemológica, isto é, afirmar a ideia de que as pessoas podem também produzir elas próprias as suas necessidades de conhecimento, mas essa postura ainda tem resistências.
Eu creio que existe a preocupação por parte da universidade em levar o seu conhecimento para a escola, mas não de aprender com ela. Porém, estou segura de que a escola também tem algo a ensinar à universidade, por essa sua capacidade de conseguir congregar pessoas de diferentes idades e origens e por ser um lugar onde elas estão se sentem mais à vontade para questionar os cientistas acerca do seu conhecimento.

Os professores falam da sua actividade sobretudo em função das actividades da sala de aula, do trabalho de preparação das aulas e da avaliação, mas raramente da vertente de investigação que deveria caracterizar a sua actividade. Nos seus artigos atribui uma função fundamental à dimensão investigativa dos professores. Quer comentar?

Sim, essa é uma ideia muito discutida no Brasil actualmente. Uma grande parte dos cursos de graduação da formação de professores contemplam uma forte componente de investigação nos seus currículos, por que se entende que hoje o professor deve construir o seu saber com base na investigação da realidade que o circunda.

Como se deve traduzir essa faceta de investigador no professor?

Quando debatemos esta questão com os professores nos cursos de pós-graduação, na tal perspectiva dos currículos praticados, há um aspecto muito interessante, e habitualmente negligenciado, que é o acervo documental adquirido ao longo da carreira. É surpreendente a quantidade de recursos disponíveis e o uso que se pode fazer deles: desde material didáctico, a provas e actividades realizadas, passando por trabalhos realizados por ex-alunos, etc.
Os professores têm muitas vezes em mãos um material de investigação valioso que pode ser passível de ser trabalhado numa perspectiva de investigação. Essa dimensão hoje está muito presente na formação e proporciona uma troca de saberes fundamental. O que é preciso é saber utilizá-los para potenciar a aquisição de outros conhecimentos.

Coordena desde há cerca de dois anos a rubrica ?Fora da Escola também se Aprende?. Afinal o que se aprende fora da escola?

Aprende-se muita coisa e esse conhecimento está directamente relacionado com a questão das redes. Na verdade, a rubrica intitula-se ?Fora da escola também se aprende? porque entendemos que é preciso compreender, no interior da escola, que nela circulam muitos conhecimentos que não são valorizados. Cada um de nós, seja o professor, o aluno, o pai ou o funcionário, quando entra na escola traz consigo todas as outras redes em que está envolvido, e a escola é, afinal, uma enorme rede de outras redes. Sempre se aprendeu assim, nós é que não tínhamos prestado atenção a esse facto e desvalorizávamo-lo.

Um pouco por todo o mundo fala-se da crise da escola. Há mesmo uma crise?

Eu penso que sim, porque a escola ocupava um lugar muito próprio e obedecia a um modelo de escola laica, universal e republicana, característico da III República francesa, que está a ser posta em questão com o aumento exponencial da informação, com o aparecimento de novas redes de conhecimento e com a crescente presença de movimentos sociais e religiosos que alteram a sua essência.
Apesar de considerar que é indispensável aprender a enfrentá-la, julgo também que todas as crises produzem conhecimento e respostas. A questão é como catalisar essas respostas e se elas serão baseadas, como até aqui, em políticas públicas. Do ponto de vista pessoal defendo essa opção, mas não sei se ela será concretizada por essa via.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 145
Ano 14, Maio 2005

Autoria:

Nilda Guimarães Alves
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Nilda Guimarães Alves
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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