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Pobre menina pobre, colonizaram até seus sonhos

As grandes corporações empresariais e seus personagens tomaram conta do circuito cultural da infância e da juventude (?) Meninas pobres são induzidas a desejar uma boneca com a qual sequer sabem brincar, tal a distância entre os traços culturais que esta carrega e o universo cotidiano de crianças brasileiras que habitam as superpovoadas periferias urbanas.

Nos meados do último dezembro, recebi pelo correio uma cartinha dirigida ao Papai-Noel. Ela vinha de uma escola municipal de Porto Alegre (a cidade brasileira que tem sediado o Fórum Social Mundial), enviada por uma menina de 8 anos. No centro de uma folha de papel com dados de identificação e desenhos natalinos, a garota desenhara um grande coração vermelho, dentro do qual escrevera a palavra Papai-Noel. Acima dele estava o pedido que a carta levava: ?papai-noel, gostaria de ganhar um tênis das Meninas Super-Poderosas, ou uma Barbie verdadeira, ou uma mochila de rodinhas da Barbie.?
Debati-me todo o mês de dezembro entre a vontade de concretizar o sonho natalino daquela menina pobre e a indignação face à tirania do império do consumo que coloniza os desejos e fantasias das crianças por este mundo afora. Quase às vésperas do Natal, decidi-me pelo presente: uma mochila de rodinhas, mas sem griffe! Esta foi a tarefa mais difícil que enfrentei! As grandes corporações empresariais e seus personagens tomaram conta do circuito cultural da infância e da juventude. Parece que uma avassaladora tsunami arrebatou todas as figuras autóctones das culturas populares locais, colocando em seu lugar os novos heróis - alienígenas híbridos disseminados pelo império midiático globalizado.
Conto esta história porque ela me parece boa para pensar. Retomo as questões apontadas por Maria Isabel Bujes no artigo publicado no A Página de abril, pretendendo dar continuidade à discussão. Antes disso, registro que outra colega pesquisadora observou que a grande maioria das cartas de crianças ao bom velhinho do Natal, pedia os mesmos presentes: certas marcas de tênis, as tais mochilas de rodinhas com personagens da mídia, telefones celulares, barbies e jogos eletrônicos. Preferências semelhantes foram observadas em Portugal, e são mencionadas na reportagem de Andréia Lobo, publicada na edição de dezembro do nosso Jornal.
Talvez seja bom lembrar, mais uma vez, o que Gitlin (2003)(1) chama de ?mídias sem limite? - uma torrente de imagens e sons que domina nossas vidas de forma incontrolável, porque cria e nos oferece satisfação, um sentimento incomparável, ao qual nos entregamos de corpo e alma. Embora a preocupação com os fenômenos midiáticos tenha ocupado um grande contingente de pensadores a partir da segunda metade do século XX (Debord, Benjamin, Bourdieu, Hall, entre tantos outros; e mais próximos da cultura latino-americana, Garcia-Canclini, Martin-Barbero e Sarlo), todos empenhadíssimos em compreender os efeitos da cultura de massa no mundo contemporâneo, parece que até hoje não conseguimos dar a esta questão encaminhamentos a altura de sua gravidade e importância. A cartinha ao papai-noel da menina pobre, trouxe mais uma vez à cena o poder da mídia que, aliado às grandes corporações empresariais, compõe uma rede quase inescapável. Em pesquisa atual, tenho me deparado com a assustadora invasão do cenário escolar pelos apelos midiáticos ao consumo.
Meninas pobres são induzidas a desejar uma boneca com a qual sequer sabem brincar, tal a distância entre os traços culturais que esta carrega e o universo cotidiano de crianças brasileiras que habitam as superpovoadas periferias urbanas. O repertório de experiências de algumas destas garotas está tão distante da vida glamurosa e fetichizada da Barbie, por exemplo, que em poucos minutos, segundo relatos de professoras, se esgotam as possibilidades imaginativas e as meninas deixam a boneca de lado, retornando às suas brincadeiras improvisadas povoadas por bebês, comidinhas, casinhas e conversas de comadres. Mesmo assim, quando uma Barbie chega à escola trazida por uma ou outra garota que a herdou da filha da patroa de sua mãe, ela é objeto de disputa acirrada, aguçando a curiosidade e reafirmando o fascínio.
O que comentei poderia levar o leitor ou a leitora à expectativa de que vou sugerir alguma conduta prática imediata, que nos ajudaria a fazer frente a tal movimentação, arregimentando a resistência. Contudo, não é o que farei, pelo simples e dramático reconhecimento de que não temos condições, no momento, como professoras e professores, de contribuir significativamente para qualquer reversão dessa tendência. E isto por dois motivos: o primeiro, porque obcecados com a operacionalidade das salas de aula, esquecemos que existe vida ?lá fora?, e continuamos sabendo muito pouco sobre o caráter do novo imperialismo; o segundo, porque, inebriados com o fascínio do espetáculo, paradoxalmente, subestimamos o poder da mídia.
O polêmico livro de Hardt e Negri (2002)(2) ? Império - fala-nos das alterações porque passam as idéias de nação, povo e soberania face às novas tecnologias, à evolução da sociedade e ao poder transnacional das grandes corporações. Segundo eles, esta nova forma de supremacia, caracterizada por permutas econômicas e culturais globais, instaura um Império sem centro e sem limites fixos, que vai incorporando gradativamente o mundo inteiro. Ao mesmo tempo em que nossas vidas inscrevem-se em um mundo cada vez mais instável, disperso, contingente e imprevisível, uma insidiosa rede de poderes perpassa tanto as instituições consagradas como os novos espaços de atuação social, instalando as tramas que reorganizam o mundo segundo uma nova ordem. Naomi Klein (2004)(3), em sua admirável análise sobre a ditadura das marcas, mostra como companhias transnacionais convertem o mundo em uma oportunidade de marketing. As marcas, argumenta ela, vendem uma idéia, um estilo, um conceito, um sonho. Uma eufórica retórica de marketing da aldeia global - ?adolescentes globais?, ?soluções para um mundo pequeno?, ?uma cultura de estilo mundial? - celebra uma promessa de igualdade planetária que se tornaria possível pela fusão de desejos e sonhos em logomarcas. Há aí uma convocação irresistível, que se materializa mediante a preferência por determinadas mercadorias, ícones deste mundo que nos faria todos iguais. Certamente, nós precisamos saber mais sobre tudo isso, para entender porque as crianças e jovens das nossas escolas são tão intensamente interpelados pelas redes que induzem ao consumo de mercadorias que, freqüentemente, têm pouco a ver com elas. - Para que serve uma ?mochila de rodinhas? em comunidades que sequer têm ruas pavimentadas? Sobretudo, precisamos saber mais para nos alinharmos a um movimento potencialmente amplo que, segundo Klein (2004), toma corpo no mundo na forma de uma resistência popular, localmente organizada, mas mundialmente orientada, contra o poder corporativo sem fronteiras que se abate sobre nossas vidas, ameaçando apoderar-se de nossas almas.

1) GITLIN, Todd. Mídias sem limite ? como a torrente de imagens e sons domina nossas vidas. Trad. Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
2)HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2002.
3) KLEIN, Naomi. Sem Logo ? A tirania das marcas em um planeta vendido. 4 Ed. Trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Record, 2004


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 145
Ano 14, Maio 2005

Autoria:

Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil
Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil

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