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Espelho, espelho meu!

? optei por utilizar com turmas das séries iniciais do Ensino Fundamental, livros de Literatura Infantil que retratassem os negros como sujeitos sociais, (?) Numa outra perspectiva, onde pudessem ser deuses, reis, princesas, fadas etc.

Em meio a uma conversa na secretaria da escola, uma professora fala muito admirada e em alto tom, sobre suas alunas: «Tive que mandar duas meninas refazerem o trabalho. Mandei que se desenhassem as duas, como você, da sua cor [negras], se desenharam loiras de olhos azuis. Pode?» Falei logo: «Vocês não têm espelho em casa? Desde quando vocês são loiras? Podem fazer tudo de novo»  
Esta situação que para alguns pode parecer inusitada ocorre com muita freqüência no cotidiano escolar.  É muito comum que crianças negras se desenhem loiras, de olhos claros.   Motivos para tal, certamente não faltam. Vemos todos os dias a valorização de um determinado tipo físico em detrimento e desqualificação de outros. 
E a escola, como atua diante da diversidade étnica?  Tendo por referência o caso específico dos negros, que formam uma parcela bastante significativa da população brasileira, podemos perguntar: o que se fala sobre os negros nas escolas? Lembro-me que, enquanto aluna, preferia a omissão da temática, pois o que ouvia eram falas e imagens de sofrimento, dor, humilhação e submissão, que me deixavam envergonhada. Ainda hoje, muitas vezes, são essas as únicas imagens do negro que se fazem presentes nas nossas escolas.
A negação da sua etnia pode ser vista como uma defesa, pois: quem quer pertencer a um grupo do qual só há informações e imagens negativas?
Para as crianças não negras estas mesmas imagens podem ter também resultados negativos, pois contribuem para a idéia errônea de superioridade de uma etnia em relação às demais, reforçando e recriando estereótipos negativos sobre a vida e história da população afro-descendente. 
Como tentativa de mudar o rumo desta história, optei por utilizar com turmas das séries iniciais do Ensino Fundamental, livros de Literatura Infantil que retratassem os negros como sujeitos sociais, vivendo histórias não só de dor e sofrimento, mas sendo personagens com vida, cultura, família e atuantes na sociedade, retratando, também, a origem africana. Numa outra perspectiva, que pudessem ser deuses, reis, princesas, fadas etc.
Ao entrarem em contato com histórias afirmativas de suas identidades, o espanto foi geral.  Foi possível ouvir falas como: ?Professora, princesa preta? Nunca vi!? Ou então: ?Professora, Deus é preto??  Foram questionamentos e olhares que demonstraram surpresa num primeiro momento, mas ao abrir possibilidades para ver de maneira diferente o que antes sequer imaginavam, abriu-se espaço para um diálogo enriquecedor. Foi possível refletir sobre a presença do negro na mídia, a história e cultura do povo negro, a escravidão, os preconceitos, dentre outros assuntos.  Quando estas histórias passaram a fazer parte do cotidiano, mudanças muito significativas puderam ser observadas. Houve um aumento da participação de crianças negras nas diversas discussões do dia-a-dia e as representações de negros nos desenhos começaram a ganhar cores bem mais próximas da realidade étnica.  Ou seja, crianças negras começaram a se representar de acordo com suas características fenotípicas.  E tanto as crianças negras como as não negras, mudaram também a forma de me representar.  Passei a ser desenhada negra como sou e não mais com cabelos loiros como era representada. O fato destas histórias terem entrado no cotidiano da sala de aula, parece ter contribuído muito para dar visibilidade ao negro, que tem deixado de ser o diferente, o outro na história.
A Literatura passou a ser o espelho refletindo imagens de afirmação da etnia negra, que reflete nos desenhos, que reflete nas relações entre os alunos, que reflete em muitas reflexões e construção de conhecimentos.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 144
Ano 14, Abril 2005

Autoria:

Ângela Maria Parreiras Ramos
Professora da Rede Municipal do Rio de Janeiro; ex-aluna da Pós-Graduação e do grupo de pesquisa: Alfabetização das Crianças das Classes Populares da Universidade Federal Fluminense.
Ângela Maria Parreiras Ramos
Professora da Rede Municipal do Rio de Janeiro; ex-aluna da Pós-Graduação e do grupo de pesquisa: Alfabetização das Crianças das Classes Populares da Universidade Federal Fluminense.

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