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O desporto como filosofia de transformação social

Manuel Sérgio Vieira, teorizador do desporto, político e humanista, defende

Considerado recentemente como um dos sete principais teorizadores do desporto a nível mundial, Manuel Sérgio Vieira é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado em Motricidade Humana pela Universidade Técnica de Lisboa (UTL). A sua tese de doutoramento, intitulada ?Para uma Epistemologia da Motricidade Humana?, defende a existência da ciência da motricidade humana, de que a educação física é a pré-ciência, e fundamentou a criação da Faculdade de Motricidade Humana da UTL.
Conferencista de nível mundial, é também sócio da Associação Portuguesa de Escritores, autor de 27 livros e inúmeros artigos em revistas nacionais e estrangeiras. Foi presidente do Partido de Solidariedade Nacional e deputado da Assembleia da República, entre 1991 e 1995. Desde 2001, é também colaborador regular do jornal A Página da Educação, onde partilha a rubrica ?Educação Desportiva? com os seus colegas André Escórcio e Gustavo Pires.
Nesta entrevista, Manuel Sérgio explica porque razão considera a motricidade humana como uma nova ciência social e humana e quais os motivos que o levam a afirmar que ela tem um fim eminentemente político. É que, na opinião de Manuel Sérgio, o principal avanço epistemológico que a educação física deve procurar hoje em dia é reconhecer as ?raízes políticas do seu próprio nascimento?.

Uma das questões que tem caracterizado o debate sobre a identidade na educação física nos últimos anos passa por saber se ela é uma actividade pedagógica ou uma ciência em si mesma. Como é que se originou este debate?

Antes de mim já outros teóricos tinham discutido este tema. Eu comecei a pôr esse paradigma em causa quando entrei para o Instituto Nacional de Educação Física, em 1968, e avancei para uma nova ciência através de uma teorização inédita. Na minha opinião, era evidente que esta área estuda as pessoas como um todo e não apenas o aspecto físico.
O conceito de educação física nasce com a idade moderna, com o racionalismo, num tempo em que se julgava que o ser humano era composto por duas substâncias distintas ? corpo e alma ?, e em que, ao mesmo tempo, emerge o capitalismo. A educação física, enquanto separação do ser humano em corpo e alma, é também ela o reflexo da separação da sociedade em senhor e servo.

O que o professor defende na sua tese de doutoramento ?Para uma Epistemologia da Motricidade Humana?, que o tornou conhecido, é exactamente o contrário...

Sim, na medida em que o espírito emerge do corpo e que não podemos separar um do outro. O ser humano é uma complexidade - para utilizar a linguagem hegelo-marxista -, ou melhor, uma totalidade. Como tal, a expressão educação física reflecte um tempo que já não é o nosso e deve, portanto, ser posta de lado. De acordo com o positivismo ideológico e racionalista que lhe dá origem, é uma expressão despolitizada, na medida em que se refere apenas ao aspecto físico. O grande salto que hoje a educação física deve dar é no sentido de reconhecer, antes de mais, as raízes políticas do seu próprio nascimento.

Defende a tese da motricidade humana enquadrando nela a educação motora mais do que a educação física?

Sim, é uma educação motora porque se trata de pessoas em movimento intencional tentando superar e superar-se. Alguma vez no desporto vemos apenas o esforço físico em presença? Não, vemos pessoas que cantam, que sofrem, que amam, que choram, que gritam...isso é o que está dentro de nós. Portanto, a educação física ou é uma tradição ou é uma ignorância.

Se pudesse resumir numa ideia apenas o fundamento da sua tese de que forma o faria?

Que a ciência da motricidade humana é uma nova área das ciências humanas que estuda o ser humano em movimento intencional tentando superar e superar-se. E quando eu falo em superação não me refiro apenas à superação física ? que seria o mesmo que estarmos a trabalhar metade de nós próprios ? refiro-me sobretudo à superação ideológica, ética, ou seja, o indivíduo na sua totalidade a tentar superar-se. A minha teoria tem um fim eminentemente político, não tenho qualquer receio de o afirmar.

O presidente da Federação Internacional de Educação Física e vice-presidente da Associação Internacional das Escolas Superiores de Educação Física, o brasileiro Manoel José Manuel Gomes Tubino, publicou um livro onde analisa as teorias da educação física e do desporto e o considera como um dos sete principais teorizadores do desporto mundial. Como se sente ao ver o seu trabalho reconhecido?

Não sinto nada em especial, porque conheço os meus limites. Se é verdade que criei qualquer coisa nova, o facto é que ela não é aceite pela esmagadora maioria dos professores de educação física em Portugal, porque eles têm receio de acabar com a expressão "educação física".
A ciência da motricidade humana forma técnicos desportivos, técnicos de dança, técnicos de reabilitação, ergonomistas, etc. Mas na sua origem está o ser humano querendo chegar mais alto. O desporto não se fundamenta em si próprio. A essência do desporto é anterior a ele mesmo. É o ser humano em movimento intencional. Portanto, há algo antes do desporto. E é esse algo que erra. É isto o próprio desporto.

A sua teoria tem um fundamento indissociavelmente filosófico?

Sim, partindo de duas grandes raízes: a cristã e a hegelo-marxista.

Porque razão acha que a sua teoria ainda não é geralmente aceite?

A minha teoria não é geralmente bem aceite por um puro sentimento de corporativismo e porque é muito difícil aceitar uma mudança de paradigma: a passagem do plano meramente físico ao plano político assusta. Sabe-se perfeitamente que a educação física tem um intuito pedagógico, de disciplina, de respeito pelo adversário, mas, na prática, ela educa pessoas quase com fins bio-médicos. Eu pretendo ir além de tudo isso. Há uma sociedade injusta que é preciso transformar, e, na minha opinião, o desporto tem de ser uma forma de contra-poder.

Quase se pode dizer que tem um fundamento revolucionário?

Sim, mas não pode ser de outra maneira. O desporto está de tal modo conluiado com esta sociedade injusta que não há outro caminho a seguir. O desporto serve hoje, acima de tudo, para adormecer as pessoas à custa da sociedade injusta estabelecida. Muitas pessoas têm medo de pegar nestes temas e na minha tese precisamente porque ela questiona este pressuposto. Depois, há um corporativismo que se torna muito difícil de vencer. Parafraseando uma célebre expressão: ?O desporto é um aparelho ideológico do Estado".

O desporto como revolução social

A prática desportiva é um hábito pouco enraizado nos portugueses. Aliás, de acordo com um recente estudo da União Europeia, somos o país da Europa que menos pratica desporto. Que razões encontra para este facto?

Em Portugal subsiste uma ideologia retrógrada e integrista, herdada do catolicismo, que vê o corpo como algo de desprezível. Felizmente, essa perspectiva tem vindo a desaparecer aos poucos? O que eu gostaria de dizer àqueles que se preocupam com o facto de as pessoas não praticarem desporto, é que se questionem eles mesmos sobre se este desporto faz bem a alguém ou que, por si só, ele dá saúde.
São interrogações necessárias, tal como é necessário o professor de educação física e o técnico desportivo, por exemplo, questionarem-se sobre que tipo de pessoa querem formar a partir da respectiva aula ou treino. Temos de nos convencer que a saúde não advém apenas do exercício físico, mas também da paz de consciência. Nesse sentido considero que andamos iludidos?

Não se deverá também à falta de incentivos e de condições para a sua prática?

Sim, isso também é verdade. Mas o mais grave é ver que hoje em dia as pessoas são empurradas para os grandes espectáculos desportivos e adormecidas por eles. Onde é que nos jornais desportivos se fala do desporto de lazer, do desporto de recriação, do desporto escolar? Nada, ou quase nada. É uma sociedade mercantil, rendida ao espectáculo. É ridículo apercebermo-nos que, actualmente, quem faz mais publicidade ao desporto de lazer são as grandes centrais de venda de material desportivo?
O que dá saúde é uma sociedade diferente, e nessa sociedade diferente vai aparecer o verdadeiro desporto, porque não se pode isolar o desporto da sociedade em que ele nasce.

Não tem receio que a sua teoria possa ser considerada utópica?

Na minha opinião, utópico é insistir numa sociedade onde não há pão para todos, onde não há educação para todos, onde não há saúde para todos, e pretender que exista desporto para todos, é com certeza utópico. Ainda ontem ouvi que apenas doze por cento dos portugueses faz desporto. São concerteza os mesmos portugueses que têm direito ao pão, à saúde e à educação. Porque os outros, os que não têm, também não têm direito ao desporto. Temos de começar a ver as coisas de outra perspectiva?

Portugal tem uma fraca representação desportiva a nível internacional, limitada habitualmente aos sucessos do futebol ou do atletismo. Que comentário lhe merece a política de captação e de formação para o desporto de competição em Portugal?

O desporto de competição faz-se através de uma especialização precoce. Como acontece em alguns países, onde se procuram crianças com aptidões e se faz delas campeões logo desde garotos. Se não há um trabalho de captação, de detecção de talentos, é evidente que se torna difícil o aparecimento de campeões.
Mas eu volto a insistir: na minha opinião o campeão em desporto só se justifica com a expressão corporal do desenvolvimento sócio-económico de um povo. Caso contrário, é um sucesso fictício. Não consigo conceber campeões em países como o Quénia e outros que tal? Em países onde se passa fome há campeões?
Pelo contrário, num país que tem tudo para todos, brotam naturalmente os campeões no desporto, como brotam os campeões nas artes, nas letras, nas ciências. Para mim isso é que é, de facto, um desporto verdadeiro. Eu sei que isto pede uma revolução social, mas não há outra maneira. Já há muitos anos que nos andam a enganar. Chegou a altura de dizer "basta" e começar a ver o desporto de outra forma.

Mas, limitando-nos ao actual contexto, falta o quê? Uma estrutura organizativa mais capaz?

Em Portugal tudo é canalizado em função do futebol. Repare que no atletismo, por exemplo, só temos grandes fundistas. Porquê? Porque é mais fácil pôr indivíduos a correr por aí fora? Não temos grandes atletas no salto em altura, por exemplo.
Depois, os próprios Jogos Olímpicos são uma forma de os países afirmarem a sua superioridade, e eu não reconheço nisso nada de educativo.

O desporto perdeu a sua característica de actividade competitiva salutar para se transformar num negócio altamente lucrativo. Acha que através desse processo se tem vindo a perder a verdade desportiva?

Eu penso que não é por acaso que os políticos apoiam tanto o desporto. O desporto adormece as pessoas e leva-as a discutir jogos de futebol a semana inteira e a esquecer os problemas essenciais da vida. É por isso que o desporto devia vir em segundo lugar, não em primeiro.
Eu sou um indivíduo que gosta de desporto e do espectáculo desportivo, não é isso que está em questão. O que critico é o facto de se dar mais valor ao desporto de alta competição e ao espectáculo a ele associado do que à criação de uma sociedade que proporcionaria o espectáculo desportivo em condições, tal como proporcionaria o teatro, a música, etc. Nós temos de criar um espaço onde o desporto não seja uma mentira. Nesse sentido, não me interessa se vamos ganhando mais ou menos taças?

Que conselho daria aos professores de educação física no sentido de estimularem os alunos para essa visão antropológica do desporto?

Diria que pensassem que cada gesto desportivo tem de equivaler a um momento de reflexão, onde esteja presente o fundamento ético e político que humaniza a nossa acção. As aulas de educação física são um espaço de politização extraordinário - atenção: eu chamo-lhe politização, não partidarização -, um espaço que pode fazer homens livres e criar consciências críticas. O desporto tem possibilidade de fazer isso como provavelmente mais nenhuma disciplina terá.

No contexto do que tem vindo a defender ao longo desta entrevista, como caracterizaria o actual modelo de formação dos professores em educação física?

Aí também tem de haver outra revolução. O actual modelo de formação de professores de educação física é centrado num racionalismo e num empirismo próprio do tempo de Descartes: tudo é científico é matematizado. Ora, o que é científico é a matemática, o ser humano não cabe dentro dum número.
Como tal, temos de caminhar o mais depressa possível para uma metodologia específica das ciências humanas, onde o suporte empírico seja visto como indispensável. Não estou a afirmar que os números não sejam necessários, estou a dizer que não bastam. A formação superior em educação física tem de passar a ser considerada uma ciência humana, onde se estuda, teoriza e pratica.

O mestre de José Mourinho

Para além da sua faceta de homem do desporto, o Manuel Sérgio tem também um passado político de relevo. Como foi essa experiência?

De facto, fui o primeiro presidente do Partido de Solidariedade Nacional. Não me arrependo de nada do que fiz na vida, mas admito que essa é uma página menos feliz no meu percurso.
Quando entro para o Partido de Solidariedade Nacional ele era uma força política com uma base alargada de reformados, que lutava pelas pessoas com reformas miseráveis e pelos interesses de uma camada da população onde há problemas de solidão, de miséria, de exclusão, etc.
A partir de determinada altura entusiasmei-me e julguei poder fazer ali um trabalho bonito, criar uma ideologia fundada na própria ideia de solidariedade e fazer dele um partido inter-geracional, com lugar para novos e para velhos. Porém, cheguei à conclusão que estava rodeado de velhos no corpo e na alma que não me aceitaram. Eu era um corpo estranho, a mais? No entanto, devo dizer que quando saí aquilo praticamente acabou. As coisas só vivem quando se transformam. Não fazia sentido aquilo ser um partido dos reformados, tinha de ter uma justificação ideológica. Julgo que me adiantei muito em relação àquelas pessoas.
Mais tarde tive convites para integrar outros partidos, mas recusei.

Ficou desiludido com a política?

Sim, e acima de tudo um pouco desiludido comigo próprio, porque não soube ver rapidamente que aquele não era um meio para mim. Há muitos momentos em que não sou forte. O tempo que estive na política foi para mim um período de grande aprendizagem, mas não me senti realizado.

Para além da sua actividade docente, a que mais se dedica actualmente? Que outros interesses tem?

Tenho viajado pelo estrangeiro, de onde recebo convites para leccionar, sobretudo da América Latina, onde a minha teoria sobre a motricidade humana está a penetrar com algum sucesso.

Aquele que foi reconhecido, este ano, como o melhor treinador de futebol do mundo, tem a fama de dar um particular destaque ao trabalho psicológico com os jogadores, ou seja, vê a competição e o desporto não só como um produto do esforço físico, mas também como um produto do esforço humano. Tendo em conta que o José Mourinho foi seu aluno, pensa que ele interiorizou alguma das suas ideias e as aplica no seu trabalho?

Em primeiro lugar gostaria de dizer que o José Mourinho é um homem invulgarmente esperto, possuidor de grandes qualidades intelectuais. Ele apanhou de mim - como ele próprio diz -, a ideia pela qual desde sempre me debati e que tenho vindo a defender: que é necessário reconhecer o desporto como uma área das ciências humanas. Eu próprio lhe disse: "pode saber muito de preparo físico, de técnica e de táctica, mas se não trabalhar o indivíduo há-de ser um treinador igual aos outros." Ele ouviu isso da minha parte. E, na realidade, ele trabalha os jogadores na perspectiva do indivíduo.
Apesar de não partilhar da mesma orientação política que eu defendo, de qualquer maneira julgo que terá aprendido alguma coisa comigo. Tive muitos alunos que agora são grandes técnicos de futebol, mas julgo que só ele conseguiu apanhar o cerne da minha tese.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 143
Ano 14, Março 2005

Autoria:

Manuel Sérgio Vieira

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Manuel Sérgio Vieira

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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