Página  >  Edições  >  N.º 141  >  Os livros, Borges e as crianças de Alpina

Os livros, Borges e as crianças de Alpina

Para (e com) Sara,
aluna do curso de pedagogia da Feso  em Teresópolis

Jorge Luis Borges em ?El libro? escreveu que ?de los diversos instrumentos del hombre, el más asombroso es, sin duda, el libro. (...) es una extensión de la memoria y de la imaginación. ? Provavelmente Borges construiu esta opinião sobre o livro - este objeto da nossa cultura - alimentando-se do conjunto de valores que a sociedade moderna ocidental lhe atribui, muito também em função da sua formação em uma família tradicional portenha para a qual livros e a leitura consistiam em um valor absoluto e, mais tarde, devido ao seu talento inquestionável para escrever, para usar as palavras e a literatura como sua maneira própria e única de intervenção no mundo.
Imediatamente lembrei-me de Borges e da construção do livro como um objeto cultural, quando a professora Sara Patrícia Ribeiro Belo - educadora de uma turma bisseriada (alfabetização  e  1ª série ) da  Escola Municipal de Alpina, situada na zona rural da cidade de Teresópolis, no Rio de Janeiro - contou-me o episódio a seguir.
A  escola  onde  atuo  situa-se  numa  localidade  marcada  por  uma  paisagem  que  tanto  abriga  enclaves  cinematográficos, quanto  imensos  bolsões  de  pobreza. A  maioria  dos  alunos  provêm  da  camada  mais  pobre  e  chega  à  escola, muitas  vezes, sem  nunca  ter  visto  um  livro. Por  esse  motivo, sempre  tivemos  a  preocupação  de  iniciar  o  ano  letivo  com  um  projeto  que  se  responsabilizasse  pela  ?apresentação?  e  por criar uma intimidade  entre  o  objeto-livro  e  nossas  crianças.
Isso que conto aqui aconteceu  em  Março  de  2002 (um  mês  depois do início do trabalho com as crianças de valorização do livro em um projeto pedagógico). Certo dia, ao chegar à escola, fui recebida  pelos  alunos com euforia. Ao entrar na secretaria observei que eles haviam  trazido  para  a  escola  cerca  de  30  livros  encontrados  no  ?lixão? de  um  condomínio-clube  que  se  situa  atrás  da  escola. Enquanto a  diretora  limpava  e  organizava  alguns  livros, um  dos  alunos, de 6 anos, me  dizia: -  Olha  tia! Que  pecado! Jogaram  os  livros  fora! Aí, a gente pegou, né?
Sinceramente  fiquei  emocionada  com  tamanho  zelo  demonstrado  por  aquelas  crianças  com  um  objeto, que  havia  bem  pouco  tempo  não  lhes  trazia  significado  algum. Fiquei ainda mais perplexa ao  verificar  que  nenhum  livro  era  de  literatura  infantil  e que, ainda  assim, as  crianças  desejaram salvá-los.
Está claro que a cultura, ou mais especificamente os objetos construídos e valorizados por nós culturalmente não são somente construídos por nós. A cultura é construída por nós e, ao mesmo tempo, nos constitui como sujeitos. E é esta constituição do sujeito pela/na cultura que aproxima em termos de valores Borges e as crianças de Alpina. O primeiro que tendo dedicado grande parte de sua vida aos livros e à literatura comprava livros e os amava mesmo depois de cego, como ele mesmo conta: ?Yo sigo jugando a no ser ciego, yo sigo comprando livros, (...) llenando mi casa de libros (...) Penso que el libro es uma de las posibilidades de felicidad que tenemos los hombres".
Borges e as crianças de Alpina revelam que nossa relação com os livros - nossa deferência em relação a eles - está para além do fato de podermos/conseguirmos/alcançarmos lê-los. O primeiro, mesmo impossibilitado fisicamente de ter acesso a tudo o que continham os volumes que lhe enchiam a casa, continuava devotado ao objeto. Os últimos, mesmo alijados daquilo a que convencionamos chamar de mercado editorial, ou seja, mesmo sem serem a princípio sujeitos consumidores de livros, devotam a esse objeto cultural um amor incondicional que lhes move a ?salvar? os livros abandonados no ?lixão?. Borges e as crianças de Alpina identificam no livro um patrimônio da humanidade, um ícone da humanidade em nós. A questão que fica para mim, que me provoca e que não posso me furtar-me a dividir com o leitor é ?qual a importância da escola nesta construção??. No caso de Borges não tenho subsídios para identificar pontualmente sua importância, mas certamente as incursões pela biblioteca paterna somadas à formação em escolas tradicionais européias e a seu talento de escritor foram fundamentais. Entretanto, no caso dos alunos de Sara, parece-me fundamental além do trabalho de valorização do livro como produto cultural, que as professoras fazem com as crianças, identifico a valorização deste objeto cultural na sociedade, um discurso que circula não só nos meios onde as pessoas são consumidoras de livros, mas que se dissemina também de uma maneira geral naqueles espaços nos quais os sujeitos não representam necessariamente aquele leitor.
É o trabalho feito na escola que gera nas crianças este amor extremo aos livros e que produz inclusive a atribuição de um significado ao livro diversa daquela como o significa sua família. A experiência das crianças do lixão de Alpina faz-me identificar na escola o poder de inculcação no sujeito dos valores da sociedade como um todo.
De resto, eu que não tive contato com muitos livros na infância, que não tive bibliotecas por onde me perder, penso na minha própria atitude a cada livro novo que adquiro: meu primeiro movimento é aproximá-lo do rosto, cheirá-lo, acariciá-lo, como se a materialidade do objeto me afetasse através de todos os sentidos, me tomasse por inteiro, como se o escrito estivesse impresso não só no papel, mas também, de alguma forma, em minha corporeidade.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 141
Ano 14, Janeiro 2005

Autoria:

Mailsa Carla Passos
Doutora em Educação pela PUC-Rio; Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Mailsa Carla Passos
Doutora em Educação pela PUC-Rio; Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo