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Sinais incertos: a escola pública na cidade

23 de Setembro, abertura do ano lectivo numa escola do primeiro ciclo do centro de uma cidade do norte do país. É a reunião de pais (mães) das turmas da manhã do 1º ano. Nesta Escola estão matriculadas mais de noventa crianças no 1º ano, formaram-se quatro turmas, duas no horário da manhã e outras tantas à tarde. Há umas semanas, quando tratou das matrículas dos filhos (gémeos), a Glória indicou a sua preferência pelo horário da manhã e por uma certa professora. De manhã, porque as crianças estão com a cabeça mais "fresca" e porque as professoras estão efectivas na escola e levam os miúdos até ao 4º ano. Para conseguir entrar na primeira prioridade deu a morada da avó dos meninos no centro da cidade, embora eles residam numa freguesia dos arredores. Poderia tê-los matriculado à mesma numa escola da cidade com base no facto de ela aí trabalhar, mas isso colocá-los-ia na terceira prioridade e poderia não conseguir integrar os filhos numa das turmas do horário da manhã daquela escola. À tarde, ela não quer: as crianças estão já meio cansadas, "rendem" menos, as professoras são "provisórias" na escola, não há garantia de que acompanhem os alunos ao longo do ciclo; para além disso, as "turmas da tarde" são susceptíveis de serem constituídas por crianças de famílias menos bem situadas na escala de estatuto da cidade. Dantes, diz ela, as "turmas da tarde" eram formadas principalmente por ciganos, deficientes e pelos meninos e meninas abandonados da Santa Casa da Misericórdia. E eram entregues às professoras contratadas que chegam e partem todos os anos, são mais jovens e menos experientes e "não os seguravam"; agora não se formam essas turmas, porque o "Presidente do Agrupamento" não deixa, mas muitos pais (mães) preocupados e bem informados procuram, ainda assim, garantir uma turma do horário da manhã para os filhos. Se as vias normais não resultarem, movem-se influências e outros meios mais ou menos (ir)regulares: faz-se o pedido às professoras ou, por exemplo, à vereadora da Educação da Câmara Municipal, que foi mobilizada num caso de transferência da tarde para a manhã; sem sucesso: o número de alunos das turmas tinha já sido comunicado e autorizado pela DREN e não era possível alterá-lo. Perante a situação de duas permutas entre alunos da manhã e da tarde, a mãe do pedido à vereadora confidenciou que, se se empenhasse mesmo na transferência, faria uma permuta com "uma daquelas crianças carenciadas" da manhã; dava "quinhentos euros aos pais" e a permuta estaria conseguida.
Meses atrás rebentara a polémica: uma avó, professora reformada daquela escola, tentara formar uma turma para os seus dois netos que iniciariam o 1º ano agora em Setembro; "uma turma de elite", segundo a Glória, com crianças escolhidas pela avó que, junto das ex-colegas, procurou conseguir escolher os companheiros dos netos; novamente, consta que tal iniciativa se gorou porque o "Presidente do Agrupamento" não deixou.
Numa outra escola de uma outra cidade, num outro ano lectivo, 2003/04, os pais dos alunos de uma "turma da cidade" do 5º ano, constituída por filhos de advogados, bancários, professoras, educadoras de infância, contestou o horário dos filhos, evocando leis e regulamentos e protestos e movimentações a outros níveis; o Presidente do Conselho Executivo ter-se-á "intimidado" ou sensibilizado pelos argumentos: o que é certo é que nenhum horário foi alterado na Escola, excepto aquele da turma cujos pais brandiram "razões fortes".
Os episódios que (re)contamos testemunham esta onda difusa, e contudo inegável, que envolve a Escola, projectada por uma parte crescentemente visível dos Pais/Mães, de cuidado, legítimo e bem-vindo; de procura, tantas vezes ilegítima, ilegal e até imoral, de (micro)vantagens, face às pequenas (grandes?) desigualdades e/ou desfavorecimentos e inconvenientes ? usando múltiplas estratégias para salvaguardar a ínfima (significativa) vantagem ganha em estar entre aqueles que, pela sua posição social e estatuto, se encontram aparentemente melhor posicionados ?; de reivindicação, justificada ou indevida. A Escola está hoje no centro de uma luta protagonizada por sectores e actores desses heterogéneos, mal definidos e contraditórios grupos sociais conhecidos pela cada vez mais vaga designação de "classes médias". Esses sectores e actores ? numa aliança (instável, ainda que, porventura, indestrutível) de adversário-íntimo irmão entre alguns pais e professores, e tendo sido a classe média o sustentáculo político e ideológico da expansão, difusão, desenvolvimento, e mesmo democratização, da escola pública ?, estão actualmente envolvidos na afirmação e concretização de posicionamentos, propostas, projectos e estratégias (insidiosas micro-estratégias individuais ou demolidoras estratégias colectivas) que armadilham e aprisionam a escola pública aos seus interesses e obsessões particulares. Neste caminho, são autênticos "condomínios fechados" que se pretende criar na escola pública, onde aqueles que o desejam se sintam o mais possível protegidos e entre os seus (mais ou menos) iguais e de onde possam ser subrepticiamente mantidos à distância, pelas fronteiras invisíveis das regras formalmente aplicadas ou informalmente contornadas ou violadas, as categorias sociais hoje rotuladas como as novas classes perigosas, os indesejáveis, ou tão somente aqueles "filhos de um deus menor" aparentemente posicionados para perder (perdedores anunciados). O lugar simétrico desses procurados condomínios fechados na escola pública são os guetos, reais ou potenciais, que, como uma inexorável acusação, se perfilam nas paisagens do nosso sistema educativo que, envergonhada e penosamente, vamos decifrando.
Estes são obscuros sinais que, ainda indecisa, mas insistentemente, parecem contudo modelar as faces do nosso sistema de ensino e das suas densas e quotidianas realidades; são agora e apenas fragmentos? Por certo serão ... mas notamos que, insidiosamente e à sua maneira encoberta, deixam sulcos visíveis nas vidas e nos horizontes de uma franja ainda incerta de gente; aqueles que todos os dias povoam e fazem a Escola que, bem no centro ou confundidos na espuma das margens, estes sinais vão tracejando.

Os clientes ideais e o mosaico da cidade

Um estudo clássico de Becker, com mais de trinta anos, identificava o processo desenvolvido pelos professores, no contexto da escola de massas, de criação de um modelo mental de cliente(aluno) ideal que funda e orienta as suas metodologias de ensino e as suas concepções acerca do seu trabalho e responsabilidade profissionais; uma das questões mais relevantes quanto a este processo relaciona-se com o facto de que as características sócio-culturais e escolares que constituem aquele modelo orientador das concepções e actuações dos professores são aquelas exibidas pelos alunos das classes média e alta com quem os docentes tendem a identificar-se, em virtude da sua origem e/ou percurso biográfico. Se, até à actualidade, os conceitos de aluno-ideal e de interacção selectiva (1) continuam a evocar e a esclarecer processos sociais importantes quanto à relação dos professores com diferentes grupos de alunos, presentemente a realidade adquiriu novos matizes e configurações. Assim, as famílias susceptíveis de produzirem estudantes cujo perfil se aproxime do modelo de aluno-ideal parecem, hoje, estar a mobilizar-se, por vezes com o apoio activo e ambivalente de alguns professores, para lograr, não apenas que aqueles permaneçam como a referência-padrão para as políticas educativas e as práticas pedagógicas dos profissionais do sistema, mas criar, de facto, áreas protegidas e espaços privilegiados em seu benefício dentro de uma instituição habitada por uma população cujas heterogeneidade e desigualdade ameaçam tornar-se a própria forma de ser do sistema. Quem poderá domar o galope do vento?(2).

(1) Cf. Gomes, Carlos Alberto (1987). A interacção selectiva na escola de massas. Sociologia, Problemas e Práticas.
(2)Utilizo aqui a evocação livre de um verso de uma canção que não sou agora capaz de situar, mas ressoa insistentemente na minha memória.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 141
Ano 14, Janeiro 2005

Autoria:

Fátima Antunes
Univ. do Minho
Fátima Antunes
Univ. do Minho

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