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O Presidente Sampaio e «a cultura portuguesa»

Fui surpreendido, no sábado, 5 de Novembro, pela seguinte declaração do Presidente Sampaio, em resposta a uma pergunta dum jornalista do «Público». A «Bíblia faz parte da cultura portuguesa». A ocasião foi a iniciativa da Sociedade Bíblica Portuguesa e de «equipas que englobam pessoas de diferentes confissões cristãs», de oferecer scriptoria em todo o país para os interessados copiarem à mão excertos da Sagrada Escritura. O Presidente deu o exemplo, copiando um trecho, não sem antes fazer a declaração que citei e que surge no título que o jornal dedicou ao acontecimento (p. 34).
A expressão «cultura portuguesa» é daquelas cujo significado não costuma ser ponderado. E uma expressão substantiva, sempre antecedida do artigo definido: « cultura portuguesa». Eu, que passei boa parte da minha vida em Guimarães, sempre pensei que a cultura que assimilei nesta região pouco tinha a ver com o que percebia quando ia a Lisboa. Lisboa era uma cidade estrangeira para mim. Que semelhança havia entre os amigos, os vizinhos, os carolas da acção cultural e desportiva, as mulheres «do cotão», as estreitas estradas atulhadas de fábricas e fabriquetas, o som redondo das vogais, o vira dos ranchos, a linguagem («som cm' c'roas!») e infinitas outras coisas da terra onde eu residia, com as formas do fazer, do viver, do cantar, do dizer, na capital?
Quando se diz que Aquilino Ribeiro e Vasco Graça Moura «fazem parte da cultura portuguesa», que quer isto dizer? Que há de comum entre a escrita, a postura ideológica e política, a maneira de estar na vida, dessas duas pessoas? O facto de escreverem na mesma língua? Mas será que eles escrevem na mesma língua? Ou não existirão mais parecenças entre uma tradução de Graça Moura e um Dante e Petrarca originais (italianos da Idade Média), do que entre uma das suas prosas e Andam Faunos pelos Bosques?
«A cultura portuguesa» é uma expressão de aproveitamento político. Sempre. Causa a impressão em quem a diz ou quem a ouve que existe um Portugal não apenas unido, mas único - porque é um e porque não se confunde com «os outros». Nada disto corresponde à realidade, como é evidente para quem não quer viver com base num mito de si próprio. Porque houve quem vivesse, e há quem viva sem dispensar tal mito. Foi com ele que nasceu e floresceu o nazismo alemão, cujas consequências para o mundo não será necessário lembrar. Ainda há por aí saudosistas da "Raça", mas o que predomina não é isso: predomina, mesmo em cronistas lúcidos (estou a pensar no Miguel de Sousa Tavares), a ideia da superioridade intrínseca do «Ocidente». Aquilo a que Edward Said chamou (transpondo uma designação "científica" oitocentista) de «Orientalismo», ou seja, a maneira como «outramos» as culturas que não dizemos «nossas», inferiorizando-as, deturpando-as e até agredindo-as e denegando-as.
A velha Atenas, que nos deu a democracia - uma democracia que, já agora, muito pouco tem a ver com as actuais - desprezava Esparta, que tanto era parte da Grécia, como Guimarães é de Portugal. Esparta representava tudo o que a democracia ateniense odiava. Mas, ontem como hoje, que sabemos de Esparta? Apenas as representações que dela nos fizeram os atenienses. A verdade é que nada sabemos de Esparta, a não ser através das palavras dos seus inimigos. Por conseguinte, nós também deturpamos Esparta, renegamos Esparta, desprezamos Esparta. E apenas porque Atenas jamais conseguiu exportar a sua democracia para aquele Estado. Assistimos hoje também às tentativas ocidentais de exportar «a nossa democracia» como regime único, um, o melhor para o bem da Humanidade e portanto destinado à propagação universal.
É aqui, quando chegamos (e chegamos imediatamente) ao desejo de iluminar, instruir, quiçá arrasar «os outros» com a «nossa» cultura, é aqui que começa o Império.
Para «nós», sempre o Império do Bem. «Do Bem», porque é «nosso», e o que é «nosso»
é melhor. «O que é Nacional é bom», dizia, não por acaso, o anuncio. Mesmo que o que
seja isso de ser «nosso» fique no ar, mesmo que não saibamos o que partilhamos com o
alfacinha, com o vizinho do bairro de lata, com o pastor da Serra da Estrela, com o alentejano da charneca. A «nossa» democracia, a «nossa» literatura, a «nossa» cultura,a
«nossa» maneira de viver, iluminam o (nosso) mundo. Um mundo que, por consequência, não deve, não pode passar sem «nós».
Pois se este raciocínio já dominou e domina em vastas áreas da vida dos «ocidentais» e dos portugueses, o Presidente Sampaio encarregou-se agora de o elevar ao paroxismo. A própria Bíblia é portuguesa! Nenhuma Concordata, nenhuma Profissão de Fé, nenhum Acto Governativo, o terá afirmado com tanta clareza. Mas se o Livro de Deus - transferido, pelo Presidente, do âmbito da Fé para o âmbito da Nação e do Ocidente - pertence-nos, a «nós», para «os outros» irá sobrar o quê? Talvez o Corão, esse «outro» Livro de Deus que também é de Fé e também serve para «a cultura» de certas Nações. Pois o Corão, bem entendido, não é da «cultura portuguesa», ao menos para já. A não ser que o Presidente Sampaio se ponha agora a copiar excertos do Corão e a declarar que ele também «faz parte da cultura portuguesa». E aí terei razões para ficar ainda mais preocupado.


  
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Hélio J. S. Alves

Hélio J. S. Alves

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