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O pior cego é aquele que se recusa a ver

Portugal é aconselhado a dedicar-se aos ensinos primário e secundário, de acordo com o Relatório da Comissão Europeia, desenvolvido pelo grupo de trabalho do ?Implementation of Education and Training 2010 ? Work Programe?.

?O processo de Bolonha pode vir a retirar o Ensino Superior a Portugal (?). Assim, o grande perigo de Bolonha é introduzir um ensino superior europeu a duas velocidades, beneficiando os países que estão perto da fronteira tecnológica e discriminando os Estados membros mais atrasados?, e neste último patamar está Portugal.
É assim que Portugal é aconselhado a dedicar-se aos ensinos primário e secundário, de acordo com o Relatório da Comissão Europeia, desenvolvido pelo grupo de trabalho do ?Implementation of Education and Training 2010 ? Work Programe?.
É um abuso dirão alguns. É uma anedota exclamarão outros. Mas é um abuso e anedota consentidos.
Consentidos por uma produção legislativa que tem posto em causa o Ensino Superior Público e por um conjunto de propostas de constrangimento financeiro (Programa de Estabilidade e Crescimento e Orçamento de Estado) que apostam na ruptura de um ensino superior de qualidade. O governo de coligação de direita começou por considerar que o processo de democratização do Ensino Superior estava concluído e que era chegada a hora da qualidade. Quem afirma isto, ou não conhece a realidade ou não sabe interpretar os números.
A sabedoria popular diz que o pior cego é aquele que se recusa a ver. Como se pode declarar que está democratizado o Ensino Superior quando:
só 51% dos alunos que completam o Ensino Secundário o frequenta, depois dos milhares que foram ficando pelo caminho;
cerca de 51% dos jovens não concluem a sua formação;
a esperança média do sistema é de 2 a 2,5 anos;
o tempo para a conclusão dos cursos ultrapassa em mais de 2 anos a duração prevista;
o subsistema público rejeita alunos por causa de uma medida meramente administrativa e quantitativa, chamada numeros clausus, mesmo quando esta opção política viola escandalosamente as necessidades do país em quadros qualificados.
Obviamente que não está democratizada. O governo sabe-o bem.
Apostou-se no barato e impediu-se a qualidade. Permitiu-se e fomentou-se o crescimento desregulado do Ensino Superior Privado. O sistema de Ensino Superior que o país hoje possui não decorre, de facto, de nenhuma fatalidade, é tão só consequência natural de políticas, que resultaram dos exercícios da governação.
Hoje temos um sistema pouco eficiente. Temos falta de quadros qualificados. Há dificuldades na entrada no mercado de trabalho em determinadas áreas.
Há um emprego sub-qualificado entre a população detentora de graus académicos, o que demonstra também a incapacidade do tecido produtivo em integrar quadros de elevada formação e apostar assim em melhores índices de produtividade e competitividade.
Só uma intervenção global e prospectiva que não ignore a realidade do Ensino Superior será capaz de combater os atrasos relativamente aos restantes países da União Europeia, corrigir desigualdades sociais e reforçar as condições de cidadania de todos os portugueses.
A sociedade contemporânea propõe desafios cada vez mais complexos e exigentes. As oportunidades constroem-se mas as ameaças existem.
Não é possível enfrentar os problemas do Ensino Superior em Portugal, com propostas legislativas e orçamentais vocacionadas sobretudo para responder aos apelos neo-liberais daqueles que consideram a educação como um negócio e não como um bem público de acesso universal. No entanto o Orçamento de Estado para 2005 concretiza, mais uma vez, o rumo do desinvestimento no Ensino Superior e na Investigação. O aumento das verbas transferidas para as instituições (Universidades e Politécnicos) será feito à custa das taxas moderadoras ? propinas, pagas pelos estudantes e não pelo Estado.
Segundo o Orçamento de Estado, as famílias portuguesas deverão pagar 187 milhões de euros com propinas, ou seja, mais 18% que no ano de 2004. Por isso considero que o governo PSD/CDS é cúmplice da agenda menos conhecida do processo de Bolonha, particularmente aquela que defende e promove a elitização económica do Ensino Superior e a privatização progressiva do sector público.
Também por isso o Conselho Nacional de Educação não deixa de referir no seu parecer que ?não é possível deixar subordinar a instituição Universitária ao dominante globalismo económico liberal, que também aparece a reflectir exigências no que toca à gestão das instituições. Todavia, reafirma-se que a natureza indicativa de Bolonha não afecta o direito e o dever de salvaguardar a especificidade nacional numa Europa que se afirma e não renuncia a ser plural, valorizando os conteúdos antes da forma?.
Vejamos até onde vai o consentimento e a cumplicidade do Governo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Luísa Mesquita
Deputada do Grupo Parlamentar do PCP
Luísa Mesquita
Deputada do Grupo Parlamentar do PCP

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