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O último hussardo

B. era rodeado por mistério e importância. Alguns dos seus conhecidos sabiam algo sobre ele, mas poucos sabiam tudo. Só a sua mulher, a mãe e a avó sabiam tudo. Os restantes parentes e até os filhos estavam condenados a conjecturar.
Todas as noites, depois de as crianças terem ido para a cama, B., em chinelos, sen­tava-se junto do candeeiro a ler o jornal, e a mulher vinha ajoelhar-se ao pé dele, pousava a cabeça nos seus joelhos e, olhan­do-o nos olhos, dizia em voz baixa: «Por amor de Deus, B., vê se tens cuidado...»
B. detestava caldo de ossos de vitela. De­testava igualmente o regime.
B. é um herói.
Por vezes regressa a casa sorridente mas silencioso. Aqueles que lhe são mais queri­dos sabem que, se ele quisesse e pudesse, teria muito para lhes contar. À noite, a mulher, timidamente, sem disfarçar a admiração, per­gunta-lhe: «Outra vez?»
B. acena a cabeça e espreguiça-se. Todo o seu ser irradia força viril.
"Onde?» inquire a mulher, surpreendida com a sua própria audácia.
B. levanta-se e dirige-se à porta. Abre-a repentinamente, certificando-se de que ninguém está à escuta. Procura por detrás das cortinas. E responde, num sussurro: «No lugar do costume.»
«Ai homem»,exclama a mulher.
Esta curta palavra exprime tudo.
Como já mencionámos, entre os amigos, B. goza de uma reputação um tanto miste­riosa, mas excitante: «B. deve ser cauteloso...»«B... corre algum perigo??» «B. é que os ensina?»
A mãe preocupa-se com ele. Anda preo­cupada, mas orgulhosa. Refere-se-Ihe sempre dizendo: «O meu filho». A avó, senhora idosa e decidida que vive só, sente-se únicamente orgulhosa. Nunca deixa transparecer temor ou preocupação. Diz à filha, mãe de B.: «Há que correr riscos na nossa idade. A nossa causa precisa de homens destemidos. Se o Eustácio fosse vivo, faria exactamente o mesmo.»
Quando fala aos bisnetos, diz: «Orgu­lhem-se de ter um pai assim» ? e ao mesmo tempo mostra-lhes gravuras de cavaleiros com plumas galopando pela planície fora. «O vosso pai podia fazer o mesmo. Ainda não se deu por vencido.»
Entretanto, B. vai aos urinóis. Com cui­dado, fecha a porta à chave. Inspecciona o cubículo com olhos faiscantes. Está sozinho? Com um movimento lesto, tira o lápis do bolso e escreve na parede «Abaixo o Comunismo!»
Abandona o urinol apressadamente e salta para o primeiro táxi ou coche que encontra. Dá uma direcção que não é a sua. Sai e diri­ge-se a casa por caminhos desviados do tra­jecto normal. A noite, a mulher pergunta-lhe timidamente: «Outra vez?»
B. já há bastante tempo que actua deste modo e, apesar desta vida arriscada lhe ter abalado os nervos e causado insónias, não desiste.
É cuidadoso e muda de letra. De vez em quando, pede a caneta emprestada ao seu chefe.
«Se eles conseguem identificar a caneta. ah! ah! ah!». Emite um riso agoirento, só de pensar nos incómodos que o chefe sofreria, com esta manobra de despiste dos seus, de B., perseguidores. Os tiranos.
Por vezes B. sente o sangue gelar-se-Ihe nas veias, em contacto com o perigo. Uma vez, por exemplo, quando escrevia numa parede «Os católicos não desistirão», alguém bateu à porta com força. Estava certo que eram ELES que o vinham buscar. À pressa, apagou o slogan. Continuavam a bater. B. engoliu o lápis. Abriu a porta. Viu um homem forte de face avermelhada. Estava a fechar uma pasta. O acusador público? Sem dizer palavra, empurrou B., entrou na retrete e fechou a porta.
B. nunca mais se esqueceu deste inci­dente...
Olhava todos os empregados dos urinóis com desconfiança. Podia acontecer que algum deles fosse um espião disfarçado.
Num dia de Inverno, marchava para o campo de batalha do costume quando uma coisa o fez parar de terror. A porta do urinol estava fechada. A giz, via-se uma brutal ins­crição, sem dúvida obra do inimigo, «Fechada para obras».
B. sentiu-se como um hussardo, ao per­der a espada na confusão da batalha.
Mas decidiu continuar a batalha. Foi para a estação do caminho de ferro. Aí encontrou um pelotão de soldados dirigindo-se para o seu objectivo. A desconfiança aumentou. Não só se tinham servido de subterfúgio traiçoeiro ? «Fechada para obras» ? como declaravam estado de sítio. Imaginava tropas ocupando todos os urinóis. Mas ele era esperto demais para se deixar apanhar. Compreendia facilmente as suas tácticas toscas. Não o apanha­riam.
Era óbvio que na cidade todos os objec­tivos deviam ter sido ocupados, incluindo o Hotel Polónia e a cantina comunal «Gastrónomo 1». Decidiu portanto atacar noutros sítios. A última palavra pertencia-lhe.
Meteu-se num comboio, saiu na primeira paragem e dirigiu-se para a pobre aldeia que se avistava no vale. Mal chegou à primeira casa, pediu se podia ir aos lavabos.
«O quê?» Ficaram surpreendidos. «Nós fazemos atrás das árvores», responderam-lhe.
Anoitecia nas matas. Tanto melhor, pensou. Foi para o meio do arvoredo e escreve na neve: «O General Franco há-de ensinar-vos!»
Regressou a casa. Nessa noite, ficou du­rante muito tempo em frente do espelho a pensar se lhe ficariam bem as dragonas de um hussardo.


  
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Edição:

N.º 139
Ano 13, Novembro 2004

Autoria:

Mrozeck
Escritor
Mrozeck
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