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Nova carta inédita de Vergílio Ferreira a Serafim Ferreira

Meu caro Serafim:1
Obrigado pelas provas e pela sua carta2. Esta particularmente lhe agradeço por muitas razões - entre elas pelo facto mortificante de um frequente "não vale a pena" com que olho atrás o que já fiz e sobretudo olho o que faço. Felizes dos que se sentem justificados pelo que realizam.Por mim, só descubro no que atrás vou largando, motivos de desânimo. De modo que,mesmo nas boas palavras dos outros, se recolho encorajamento,  é um encorajamento que se me gasta depressa.  Assim mesmo, fazem--me jeito... Mas basta de lamúria. No fim de contas, se temos um destino a cumprir e a assumir, o que me cabe é assumir o meu com o bom ou o mau, o belo ou o feio que veio nele - e resignar-me3. Os correios embrulham-me a vida aqui, porque não há intervalo entre a chegada e a partida. De modo que me não é fácil regular o problema das provas - que foram para mim uma extraordinária surpresa, atendendo ao que aconteceu com os Ensaios. Eu gostaria de ter o livro todo na mão, para fixar melhor uma impressão de conjunto. Assim espero que hoje venham novas provas. Se todavia não vierem, devolverei as que aqui tenho para não empatar. Uma leitura de conjunto esclarece-nos muito sobre muitos pormenores, não apenas quanto à coerência da "história", mas ainda quanto à escrita. E sobre as suas sugestões, dúvidas e o mais, não se coíba:  tomo-as sempre na devida conta, mesmo quando persisto na minha opinião.
Obrigado pelo Comércio4. Eu assino a "Página" e portanto devolvo-lhe a sua que já tinha lido. O artigo do E. Lourenço (que espero ver estas férias) é excelente. Coincide pelo menos totalmente com o que penso do Torga -  um autor que hoje mais que nunca  me é difícil  suportar pelo tom de lobisomem sem grandeza para isso. Suporta-se esse tom, quando há lá dentro motivo para isso e sobretudo  quando esse motivo  excede essa dimensão  pessoalista. Torga passa  a vida a falar de si,  sendo esse "si" construído com  o pequeno truque da  voz cavernosa, o olho dilatado, as mãos grossas a escorrer o húmus de Trás-os-Montes. Mas um papão só às crianças impressiona. Adamastores houve um só, e mesmo esse acabou a lacrimejar como qualquer mortal. Há uma fraqueza manifesta na pretensa força de Torga, que só é força para o pobre campónio da cultura. Torga é um bom artista, mas aflitivamente limitado. Simplesmente, ele julga que não, ele pensa que por falar à Miguel Ângelo em voz grossa, Miguel Ângelo o ouve logo. Torga é um Acácio a fazer peito5.      Não li o artigo do Régio6, nem o do sujeito que logo lhe respondeu. Mas li o do Rogério Fernandes7. Régio deve ter dito asneiras, como é de sua sina ao meter o bedelho em tudo, com a mania de preleccionar toda a nação. Ficou-lhe o jeito pedagógico desde a Presença  e já ninguém lho tira. Mas assim mesmo, o artigo do R. Fernandes  - que pobreza! Também este tomou a mania de orientar a cultura no sector E. Coitado. Deixou-se engordar muito e a gordura chegou-lhe ao cérebro. Ficou assim lento e pesado no movimento das ideias. E repare como ele persiste, segundo a táctica da escola,  numa manha já velha: só agora  desautorizam quem  lhes não  convém, neste caso o António José Saraiva - a que alude, sem o mencionar. Porque foi o Saraiva  quem em  tempos arreou  no Sérgio dialecticamente.  Agora já  é um asno para ser montado pelo Vilhena. Que esperteza a destes saloios. O que eles não sabem  -  e talvez saibam... -  é que o  próprio António Sérgio disse do livro do Vilhena que se sentia nele como o Pilatos no Credo. Tinha piada que o repetisse em voz alta8. Nada recebi ainda do Costa Dias. Pode dizer-lhe que lhe escrevi para casa?                                                      

Abraços para todos aí e para si do
Vergílio Ferreira.

Notas de rodapé

1. Carta datada da Praia das Maçãs-Fontanelas, 14.Agosto.1965 - sábado.
2. Nesta altura, estavam em  revisão de provas dois livros: Espaço do Invisível-1 e Alegria Breve, mas é a este último que se refere.
3. Eram frequentes estes desabafos, tantas vezes feitos de viva voz, como comentário amargo no desenrolar dos livros que se faziam por entre conversas e opiniões trocadas sobretudo na fase derradeira da revisão de provas.
4. Tratava-se de um artigo sobre Miguel Torga, publicado em O Comércio do Porto,     que de algum modo contrariava então o que Eduardo Lourenço dissera antes no ensaio  O Desespero Humanista na Obra de Miguel Torga, Coimbra, 1955.
5. Julgo que V. Ferreira corrigiu mais tarde estas opiniões acerca de Torga, talvez pelo entusiasmo causado pela leitura do artigo de Ed. Lourenço...
6. Deve ter sido a propósito da polémica travada então, em diferentes quadrantes, pelo livro de V. Magalhães Vilhena, António Sérgio e o Idealismo Burguês, numa edição da "Seara Nova", em que interveio muita gente. O próprio V. Ferreira escreveu um texto bastante azedo sobre essa questão, que manteve inédito ao longo dos anos, mas acabou por publicá-lo, com alguns "cortes", na revista Criterium, dirigida por João Palma-Ferrreira,  nº. da Primavera de 1976.
7. Nessa altura, director-adjunto da revista Seara Nova.8. Este ajuste de contas tem algo a ver, afinal, com as posições políticas que apenas           em parte se esclareceram nas tomadas de posição e no alinhamento ideológico que, nos meios intelectuais, se conheceu depois de 25 de Abril de1974.

Nota da Redacçâo
Esta segunda carta completa a divulgaçâo de correspondência entre Virgílio Ferreira e Serafim Ferreira, iniciada no número anterior


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 139
Ano 13, Novembro 2004

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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