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A fatalidade como política

Perante a triste realidade de um país continuamente adiado, os dois Ministérios esfregam as mãos de tanto contentamento: poupa-se dinheiro, poupa-se dinheiro...Com cada vez menos alunos no sistema de ensino alivia-se a pressão sobre as infraestruturas e os equipamentos?

Dois factos em destaque: em grandes cidades, perante a sistemática diminuição da população discente, nomeadamente nas duas áreas metropolitanas, o Ministério da Educação, no seu afã de racionalizar recursos, tem procedido ao fecho de alguns estabelecimentos de ensino, obrigando escolas a fundirem-se, com desprezo pela especificidade dos seus projectos educativos. Segunda constatação: um dos argumentos preferidos pelo Ministério da Ciência e do Ensino Superior para legitimar a redução de vagas em múltiplos cursos prende-se, precisamente, com a quebra demográfica (associada a uma descida continuada nas taxas de natalidade e fecundidade).
Em ambos os casos, a demografia dita as suas leis com uma clarividência cristalina: menos alunos, menos escolas, menor número de vagas.
Todavia, por detrás destes dados que qualquer positivista sensato realçaria, esconde-se uma profunda desistência: «a realidade é como é, não interessa transformá-la». Bastaria, aliás, convocar uma panóplia vasta e consistente de indicadores ? que, de novo, nenhum amante da objectividade quantitativa desdenharia em aceitar como relevante ? para percebermos a amplitude da servidão à demografia subjacente às políticas educativas dominantes. Abandono escolar significativo, muito acima da média europeia; profundas assimetrias territoriais na distribuição dos indicadores; insucesso escolar sistemático em largas franjas da população estudantil e fraquíssima adesão ao prolongamento da escolaridade até ao 12º ano, o que significa, consequentemente, que a esmagadora maioria dos jovens não chega sequer a tentar entrar no ensino superior. 
Perante a triste realidade de um país continuamente adiado, os dois Ministérios esfregam as mãos de tanto contentamento: poupa-se dinheiro, poupa-se dinheiro...Com cada vez menos alunos no sistema de ensino alivia-se a pressão sobre as infraestruturas e os equipamentos e o próprio numerus clausus vai perdendo a sua função de implacável filtro. Além do mais, se as aspirações juvenis incorporam, precocemente, um intenso sentimento, fundado numa percepção subjectiva das condições materiais de existência (através do que os sociólogos habitualmente denominam de socialização por antecipação), de inutilidade de prosseguimento dos estudos, a coesão social não é abalada.
Tudo continua calmo, perante a verdade inultrapassável das leis demográficas...Haverá melhor exemplo de como a fatalidade socialmente produzida funciona como pretexto para  a antítese do exercício político, ou seja, o imobilismo cego e preguiçoso? Ou - se dermos um passo adiante na desconfiança metódica e crítica perante o poder instalado -, para a perpetuação do status quo e da confortável  ordem fundada na reprodução das desigualdades sociais?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

João Teixeira Lopes
Deputado do Bloco de Esquerda; Sociólogo. Univ. do Porto.
João Teixeira Lopes
Deputado do Bloco de Esquerda; Sociólogo. Univ. do Porto.

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