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Para uma ética da avaliação do desempenho

AVALIAÇÃO

Perante o olhar atónito de uma colega e a ansiedade cabisbaixa da aluna, a professora aceitou, surpreendida, o inesperado presente.

- Tome, isto é para si!
- Mas porquê?
- Porque gosto de você ... Fui eu que fiz!
Desta forma abrupta, algo intempestiva, a Margarida entregou à sua professora de História um embrulho meio desfeito, meio amassado, apertado por uma fita de cor indefinida, outrora brilhante e vermelha. Desta maneira, ela rompia uma longa cortina de incomunicabilidade e de desconfiança que progressivamente a vinha afastando da maioria dos colegas, dos professores, do estudo, enfim, de tudo quanto tivesse a ver com uma escola em que em princípio deveria conviver e aprender.
Perante o olhar atónito de uma colega e a ansiedade cabisbaixa da aluna, a professora aceitou, surpreendida, o inesperado presente. Desatou com gestos delicados os nós ásperos daquela dádiva de afecto: dentro descobre um pano salpicado de cerejas bordadas com os fios de uma ternura inocente e, afinal, escondida.
- Não gosta? ...
- Claro que gosto!
E fugiu até ao dia seguinte em que um olhar cúmplice reatou a ponte por onde tudo começou a passar.
Percebe-se bem que esta curta história retrata uma cena do quotidiano escolar. Uma cena que seria menor se não encerrasse uma enorme carga humana e, por isso, educativamente importante. Mais ainda, esta como tantas outras histórias ficam esquecidas nas memórias de cada um, não passando, por isso, para as epopeias com que se constróem os estudos que marcam os nossos congressos, que enchem as nossas revistas especializadas, que merecem as distinções honoríficas do nosso Estado.
Muito pelo contrário, a pressão imposta pela necessidade de resultados quantificáveis bem como a padronização das condutas profissionais tendem a impor modelos de apreciação e de valorização dos desempenhos em que estes detalhes, apesar de decisivos, são pura e simplesmente ignorados. Em lugar dos afectos aparece a «relação interpessoal», no sítio da atenção ao sofrimento dos outros coloca-se a «abertura à comunidade» e onde deveria estar um sorriso põe-se a «empatia». Aqui os itálicos decompõem-se, ensinam-se e medem-se; os afectos, a atenção e o sorriso dão-se com as pessoas que íntegra e integralmente os cultivam. Uns, têm a ver com a pobreza dos conceitos; os outros, com a riqueza da vida.
Não quero aqui sustentar um retorno à apologia simplista do carácter fundamentalmente espontâneo dos comportamentos educativos, nem a defesa do seu carácter meramente intuitivo. Tais propósitos significariam um intolerável retrocesso numa prática de formação que permitiu, apesar de tudo, evitar o domínio da arbitrariedade e preparar grandes contingentes de professores que de outro modo ficariam à mercê de referências e de modelos promovidos segundo critérios no mínimo discutíveis. Todavia, a verdade é que a cientificação da educação e a tecnologização dos seus métodos também não pode inviabilizar o sentido humano da relação pedagógica, sobretudo quando aqueles propósitos deixam escapar este entre os dedos hirtos dos seus métodos e objectivos.
Esta questão torna-se ainda mais pertinente quando se chega à avaliação docente. Avaliação que tende naturalmente a promover algumas condutas em desfavor de outras que, ao não serem mencionadas e procuradas, deixam desde logo de ser valorizadas.
Voltemos à banalidade da história da Margarida que encontrou através da postura da sua professora de História a segurança de que carecia para ser um pouco mais feliz e, sejamos pragmáticos, para que a Escola cumprisse o seu papel: ensinar, educar, fazer aprender e conseguir realmente educar. Como é que o sistema vai distinguir professores e professoras como esta e, até antes disso, como se vai conseguir que ele não os desencoraje pela indiferença e por eventuais injustiças quando chegar a hora de incentivar os melhores e, por consequência, de censurar os medianos e os fracos.
Que garantias teremos nós, numa época marcada por tremendos e  violentos vazios emocionais, de que qualidades subtis mas tranquilas e imprescindíveis para o desenvolvimento de relações autenticamente humanas em contexto escolar vão ser incentivadas se as avaliações de desempenho, para serem objectivas, forem frias?
A professora de que aqui falámos muito possivelmente aguentará estoicamente. Deixará porém de ser um exemplo estimulante.
A Margarida, essa (e há tantas!), vai com certeza acabar por ficar abandonada...
Quem vai então, por antecipação, proceder à avaliação da avaliação para que tudo isto não passe de um pesadelo sem consequências incontornáveis?


  
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

Adalberto Dias Carvalho
Fac. de Letras, Univ. do Porto
Adalberto Dias Carvalho
Fac. de Letras, Univ. do Porto

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