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A Pretexto de Descartes...

A dúvida metódica de Descartes foi um passo muito importante para a Ciência. Configurou filosófica e metafisicamente um conjunto de certezas para o cientista prosseguir o seu trabalho, na convicção que ao Homem cabia a tarefa de perceber o mundo que o rodeia. Esta descontracção mental advinha da consciência da própria existência, através do cogito (???Penso, logo existo) e a aceitação da ideia de Deus como certeza inata e decorrente da própria dúvida cartesiana, em conformidade com o próprio cogito agostiniano, segundo o qual Deus é fonte de saber, de existência e da própria dúvida.

Descartes era um homem do século XVII, não se libertando do dogmatismo da Igreja, ambiente mental, cultural e religioso com repercussões na sua filosofia, dotada de intrincadas ambiguidades. Em Descartes, e provavelmente daí a riqueza da sua obra e pensamento, confrontam-se o homem velho e homem novo.  Neste último entronca pleno de vitalidade o Discurso do Método, a procura de metodologias racionais para chegar à verdade das coisas. Uma dúvida fecunda, a impregnar saudavelmente todos os momentos do saber, deveria ser fonte de conhecimento, processo de resolução de problemas, método adequado à curiosidade própria do espírito humano. Mas Descartes não se liberta da sua época nem de Deus. Face à vigilância que a Igreja exercia sobre as mentes, Descartes ao invés de partir unicamente do Homem para compreender a Natureza e a si próprio, vai fundamentar o conhecimento na ideia de Deus. Entre o homem filosófico e o homem histórico, qual o verdadeiro? O que há de comum aos dois? A força da conjuntura, das épocas, ou a natureza íntima de cada ser humano?
O exercício mental pelo qual Descartes chega ao «cogito ergo sun» "penso, logo existo" é um esforço filosófico. O objectivo era encontrar uma certeza única, simples e fundamental a partir da qual o conhecimento pudesse ser elaborado em alicerces metafísicos capazes de o sustentar. Ao indagar a realidade e pô-la em dúvida, Descartes deixa transparecer um desejo de verdadeiro conhecimento que vai revolucionar a História da Ciência. As areias movediças representadas pela herança do saber no século XVII, não incutiam segurança a quem amasse a verdade. O dogma, o obscurantismo, a falta de espírito crítico e o medo deturpavam o saber e toda a elaboração científica e filosófica.  E da obra de Descartes emana uma solução de compromisso, entre Deus e a racionalidade, o que faz questionar sobre se estaremos perante um estratagema para iludir a Igreja ou se se trata, efectivamente, da assunção consciente da importância do divino na tarefa do conhecimento.  Neste último caso, o Descartes histórico, vivendo numa época específica, encontra na religiosidade e nas certezas que estão para além do Homem, a justificação dos resultados do saber científico e das questões filosóficas do Homem, do pensamento, do ser e da existência. Mas se assim é, então o «cogito ergo sun» perde grande parte da vitalidade e quase nos atrevemos a afirmar ser um esforço desnecessário. Para quê tudo negar que não tivesse comprovação racional, para depois adiantarmos uma ideia de Deus, exterior ao homem, para sustentar o conhecimento?
Descartes abre uma época crucial na História do Conhecimento, cujas diversas implicações continuamos a viver hoje. Sem estar consciente dos processos  sensitivos e mentais através dos quais o homem chega à verdade, é o próprio saber que fica limitado à nascença. Sem se definir o papel da religião e do divino no difícil caminho do conhecimento da natureza humana e da natureza que nos rodeia, bem como das grandes questões filosóficas, arriscamos, como Descartes, a limitar  e deturpar, por submissão ao dogma, a capacidade do Homem chegar mais longe no conhecimento das coisas e, sobretudo, não diminuir mais o enorme fosso que separa a Ciência e a Tecnologia das pessoas comuns. E não é refugiando-nos em Deus que a ignorância poderá importunar menos. Na actualidade, o obscurantismo que limitava em séculos passados o avanço no conhecimento do mundo e da natureza, atinge agora o homem no foro moral, ético e religioso, constituindo-se em factor de demagogia, populismo e manipulação das pessoas.


  
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Paulo Gonçalves
Professor, Porto
Paulo Gonçalves
Professor, Porto

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