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Há mais vida para além da Escola da Ponte

Pergunto-me muitas vezes ? e certamente tenho alguma responsabilidade nisso ? por que não são mais frequentes os trabalhos de pesquisa e de reflexão teórico-conceptual ? por exemplo, no âmbito de mestrados e de doutoramentos ? que dêem conta de formas novas e criativas de educar, de avaliar, de organizar a escola, de aprender, de ser aluno(a) e de ser professor(a)?

Para quem está activa e criticamente atento à vida pública portuguesa, o título deste texto tem ressonâncias reconhecíveis em episódios recentes. Por isso, este título ocorreu-me espontaneamente no momento em que, convidado por alguns colegas a subscrever um documento de apoio à manutenção do projecto pedagógico da Escola da Ponte ? naquela conjuntura ameaçado pelos ímpetos de conservadorismo neoliberal e pela pequenez da visão educacional que têm demonstrado frequentemente alguns dirigentes políticos do actual Ministério da Educação ?, aceitei este pequeno gesto com algum entusiasmo, muito embora exprimisse em seguida que condicionaria o meu apoio à inclusão de uma pequena referência no abaixo-assinado onde se poderia dizer sucintamente que não apenas essa experiência deveria continuar, como, desejavelmente, outras experiências idênticas (simultaneamente com qualidade científica, pedagógica e democrática) deveriam igualmente ser apoiadas e ter visibilidade social. Para minha surpresa, constatei simplesmente que o meu nome no abaixo-assinado deixara de constar na lista dos "ilustres" apoiantes.
Evidentemente, não sei quantas experiências e projectos inovadores existem, mas sei que eles prosseguem aqui e ali, à revelia do espírito do tempo ou à custa de idealismos vários e engajamentos político-pedagógicos, talvez, para muitos, fora de moda. Lembro-me até que, há alguns anos, se chegou a publicar, pelo então Instituto de Inovação Educacional, um livro relativamente volumoso onde se pretendia justamente dar conta de algumas dessas experiências e projectos.
De qualquer modo, gostaria de dizer, em primeiro lugar e sem qualquer ambiguidade, que sou favorável a qualquer projecto inovador, sobretudo quando ele reúne condições de durabilidade e quando, junto a educadores, educandos e cidadãos em geral, vai ganhando credibilidade científica, pedagógica e democrática. Já me custa mais a aceitar que em Portugal ? e, em grande medida, graças à crescente visibilidade social de um projecto como o da Escola da Ponte (a que não será estranha uma eficaz gestão simbólica, certamente fundada na capacidade de mobilizar a comunicação social e outros legítimos recursos de poder/saber, persuasão ou mesmo de marketing, pouco acessíveis, aliás, à generalidade dos cidadãos) ? possamos ser induzidos a pensar (ainda que não intencionalmente) que a realidade das nossas escolas, toda ela, está muito aquém das "boas" realizações (ou, pelo menos, de algumas das "boas" realizações) atribuídas e atribuíveis ao projecto da Escola da Ponte, e que, por isso mesmo, este caso é "a excepção que confirma a regra".
A regra seria o marasmo, a desmotivação, a incapacidade de criar, o individualismo ou a não-colegialidade, a desprofissionalização, a autonomia outorgada como forma subtil de controlo, o esbatimento neo-tayloriano das subjectividades, o servilismo acrítico das hierarquias formais, a alienação dos alunos, a indisciplina e a violência, o desinteresse dos pais, a ritualização do ensino, a persistência de assimetrias várias, a incapacidade de empowerment, a emergência gestionária de novos panópticos, o desinvestimento emocional e afectivo, a perda da auto-estima, em suma, a regra seria apenas a aceitação passiva e indizível das realidades (tristes) das "tristes escolas".
Mas pergunto: Será que nenhum outro professor ou professora, educador ou educadora, escola ou agrupamento, existirão ? apesar das condições mais difíceis e para além das adversidade conhecidas ? que estejam dispostos a "remar contra a maré"? Ninguém mais será capaz de ser agência humana, estará decidido a buscar "outras pontes", teimará em outros percursos, resistirá criativamente aos crescentes constrangimentos, saberá inventar outras formas de estar presente e disponível? Ninguém mais ousará, apesar dos factores emergentes de ampliação da crise da escola, reinventar no seu interior espaços (por mais pequenos e frágeis que sejam) por onde se possa sentir a aragem (da longínqua e moderna) utopia da emancipação?
Pergunto-me muitas vezes (e certamente tenho alguma responsabilidade nisso) por que não são mais frequentes os trabalhos de pesquisa e de reflexão teórico-conceptual (por exemplo, no âmbito de mestrados e de doutoramentos) que dêem conta de formas novas e criativas de educar, de avaliar, de organizar a escola, de aprender, de ser aluno(a) e de ser professor(a)? Claro que para além destas questões há outras que nos levam muito mais longe. Elas têm a ver com a "razão indolente" e o "desperdício da experiência". Como escreve Boaventura Santos (2000, p. 40), "Bloqueada pela impotência auto-infligida e pela displicência, a experiência da razão indolente é uma experiência limitada, tão limitada quanto a experiência do mundo que ela procura fundar. É por isso que a crítica da razão indolente é também uma denúncia do desperdício da experiência".
Na sociedade em que vivemos, quem não aparece na televisão ou nos jornais não existe. E, não existindo, não é portador de biografias e experiências que contrariem a razão indolente. É contra isso que quis hoje escrever. Porque sei (e muitos outros professores e professoras sabem melhor do eu) que há mais vida para além da Escola da Ponte.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Almerindo Janela Afonso
Universidade do Minho
Almerindo Janela Afonso
Universidade do Minho

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