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O desporto é uma anamnese

?Quando as palavras sísmicas dos médicos ameaçam de morte os sedentários, os que não praticam habitualmente Desporto, merecem o aplauso entusiasta das grandes centrais de venda de material desportivo. É preciso que todos façamos Desporto para que outros enriqueçam, acumulem gordas quantias de dinheiro. Antes do Desporto está o Capital, também. O Desporto é, de facto, anamnese!

Desde sempre, a Filosofia duvidou. A dúvida é o seu gesto instaurador. A dialéctica é o seu método. Nela, tudo é anti-Ordem e anti-Poder. O Desporto (refiro-me ao mais publicitado pela Informação), ao invés, procura sofregamente o apoio do Poder e expande-se com Ordem e Medida (as guerras verbais, entre os dirigentes, e todos os Avelinos Ferreira Torres não põem em causa o establishment). Por outro lado, também o Poder precisa do Desporto para legitimar-se. De facto, o Desporto movimenta-se, sob a mesma bandeira que se ergue nas mãos do Poder (a sua proclamada ?neutralidade ideológica? quer dizer isto mesmo). E se este é despótico e portanto tem a ?Verdade?, o Desporto transforma-se na expressão corporal dessa ?Verdade?. O Desporto concorre mesmo à interiorização, em cada um dos desportistas, dos veredictos imperiais do déspota. Não é por acaso que o Desporto é uma Actividade Física ou, segundo alguns, um meio de Educação Física. Quanto mais físico ele for, mais acéfalo ele será e, como tal, melhor representará a vontade do Poder. O treinador, sempre que se refere aos jogadores que trabalham sob as suas ordens, repete, de forma exaustiva e massacrante: ?Os meus jogadores!?. Como se, de facto, os jogadores fossem mesmo dele! Mas não é assim que pensa o déspota, quando exclama: ?meu povo?? O treinador, para ser um treinador exemplar, para os dirigentes, os governantes e as alienadas massas associativas só tem de imitar o déspota.
E tal como o Poder diz ?trabalhar para o povo?, para mascarar a sua função constitutiva, a repressão ? também os treinos, os estágios, as competições se resumem ao exercício de uma soberania astuciosa, que controla os atletas como quem comanda marionettes. E desta forma o Desporto é anamnese, ou seja, vive de um Poder que lhe é anterior e exterior. O praticante não funda o Desporto. Só o Poder o poderá fazer ? o Poder, com a sua ?libido dominandi?, geradora de violência. A Ordem regula o espaço do senhor e do servo, dentro de uma competição insanável, que forma o devir histórico do Desporto. A Ordem da História, no Desporto, é a História da Ordem, ou de uma Desordem, onde o senhor e o servo conservarão a sua condição social, indefinidamente. De nada vale, pois uma linguagem moral, porque o Desporto decorre na imoralidade de um classismo desnivelante. O F.C.Porto, o Sporting C.P. e o S.L.Benfica representam os senhores; os demais são os servos. Aliás, este Desporto é o que gera: senhores e servos. E produz assim uma certa imagem da essência da sociedade, onde os antagonismos se apresentam como causa de progresso. Segundo Spinoza, o ser humano define-se pelo desejo. No Desporto, a lógica do desejo do praticante há-de articular-se com a lógica do Poder, ou com a axiomática do Capital (uma outra forma de Poder).
É um truismo afirmar que o Capital capitaliza o Desporto. De facto, o Capital procura, acima do mais, o lucro. O Desporto é uma actividade saudável? É um tema pujante de simpatia, mas nitidamente execrado pelo capitalista. O Desporto educa? O capitalista deita um olhar de desdém por este tema, como um bricabraque de antiqualha filosófica. O que importa, o que nos ensina a destreza das forças actualmente ascendentes é que o dinheiro dá ?status social?, o dinheiro tudo pode, o dinheiro tudo compra. E quando as palavras sísmicas dos médicos ameaçam de morte os sedentários, os que não praticam habitualmente Desporto, merecem o aplauso entusiasta das grandes centrais de venda de material desportivo. É preciso que todos façamos Desporto para que outros enriqueçam, acumulem gordas quantias de dinheiro. Antes do Desporto está o Capital, também. O Desporto é, de facto, anamnese! O que nos resta fazer? Um Desporto sem memória! Um Desporto novo! Um Desporto que urge aprender com os grandes malditos da Filosofia: Epicuro, Spinoza, Hume, Marx e Nietzsche. E ainda com os grandes mestres da solidariedade, como São Francisco de Assis. Façamos do Desporto um caos criador. O que aí está conformiza e cloroformiza multidões e... pouco mais! Ouçamos com atenção as minorias criadoras!


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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