Hélder Pacheco, narrador de histórias, nostalgias e sentimentos, em entrevista à PÁGINA:
Hélder Pacheco é um escritor que praticamente dispensa apresentação. Há vinte anos que escreve sobre o Porto, cidade que lhe alimenta uma paixão e a nostalgia tão característica dos seus livros. Entrevistamos o autor de ?O Sentimento do Porto? ? a primeira de muitas obras que escreveu ao longo da sua carreira ?, em sua casa, na Foz do Douro, de onde se tem uma vista única sobre o encontro do rio com o Atlântico, paisagem que tão bem resume a vocação marítima desta urbe. Uma entrevista onde se conversa sobre o passado, o presente e o futuro da cidade e, claro está, sobre o sentimento do Porto.A sua carreira de escritor está a completar vinte anos. Dedicou-se desde sempre à escrita ou desenvolveu outra actividade anteriormente? Antes de me dedicar à escrita integrei os quadros do Ministério da Educação (ME), logo a seguir ao 25 de Abril, a convite de alguns amigos que faziam parte do I Governo Provisório e que tinham por missão reestruturar o ME. Aceitei o desafio de integrar essa equipa e acabei por fazer carreira na Inspecção-geral da Educação entre 1974 e 1994. Nesse ano pedi para sair porque deixei de me identificar com uma estrutura que, por princípio, deveria estar imbuída de uma forte componente pedagógica, cultural e científica mas que, pelo contrário, era dominada por uma prática eminentemente tecnocrática. Como foi a transição para a vida literária? Já escrevia antes de abandonar as suas funções no ministério? A minha incursão pela inscrita começou na altura em que estive no ME, redigindo ensaios sobre experiências de ligação da cultura local à escola e à comunidade. Acredito firmemente que só conseguiremos ultrapassar os problemas da sociedade portuguesa através da resolução dos problemas da educação e, nesse sentido, não entendo a escola divorciada da sua comunidade. Quanto mais universal e cosmopolita se torna o mundo e a transversalidade na troca da informação, mais importante se torna a reafirmação da identidade e das raízes locais. Globalizados já nós estamos, cosmopolitas já nós somos, o que nos falta é sermos portugueses. E quanto mais nos afirmarmos como tal mais facilmente conseguiremos suportar esse desafio universalista. Assim, tive nessa altura oportunidade de beneficiar de bolsas de viagem, atribuídas por instituições culturais de embaixadas estrangeiras como a Suécia e a Grã-Bretanha, para conhecer a realidade desses países ao nível da recolha de tradições orais, artes e ofícios e da sua ligação ao meio. À medida que ia adquirindo esses conhecimentos fui escrevendo sobre eles e tentando passá-los para a realidade do ensino português, nomeadamente através de um projecto interdisciplinar na área da formação de professores que consistia justamente em estabelecer a ligação da cultura local à cultura da escola e à sua comunidade. O então Ministério da Comunicação Social publicou esses ensaios com o título ?Portugal, a escola e a comunidade: Artes e tradições portuguesas?. Por volta dessa altura uma amiga é convidada para dirigir uma colecção intitulada Novos Guias de Portugal e lançou-me o desafio de escrever um sobre o Porto. Quando o livro sai, em Dezembro de 84, obtém uma grande aceitação, talvez pelo facto de analisar a cidade a partir das suas comunidades, as freguesias, já que o Porto não é um só, são quinze Portos. Aliás, julgo que é a primeira vez que muitas dessas freguesias são abordadas em livro. Partindo desse pressuposto decompus a cidade: o rio, as pontes, o natal, as tradições, as fontes, as ruas, as praças, etc. Como é ser escritor em Portugal? Ser escritor em Portugal significa ter de enfrentar e de derrubar um muro quase intransponível. No meu caso, foi o primeiro livro que publiquei que me ajudou a derrubá-lo. Quando ele saiu, há vinte anos, teve tanto êxito que fui quase de imediato contactado por três ou quatro editoras. Desde então tenho editado uma média de um ou dois livros por ano e tenho projectos para os próximos dez ou quinze anos. Mas por trás deste êxito há um princípio: esforço, preserverança e trabalho. O PORTO DA MINHA INFÂNCIARefere no seu último livro, intitulado ?Porto: as gentes da cidade? e publicado no final do ano passado, que ?não adianta chorar pela cidade perdida da nossa infância?, mas sim repensá-la. Como era o Porto da sua infância? O Porto da minha infância era uma cidade complexa, controversa, cheia de problemas. Era uma cidade conservadora, que vivia num ambiente muito repressivo e anti-democrático. Era também uma cidade com muitas carências em termos de salubridade e de habitação. Apesar disso era uma cidade humanizada onde as pessoas desenvolviam relações de solidariedade. Era uma cidade habitada, onde havia muitas ?ilhas?, que eram centros muito degradados do ponto de vista habitacional mas socialmente solidários, que fervilhavam de culturas populares. Havia muitos tascos ? o alcoolismo era um problema grave nessa altura ?, mas, apesar de tudo, eles funcionavam como centros de convívio, de reunião, de sedes de clubes desportivos, recreativos e culturais, de grupos excursionistas. Sendo uma cidade problemática e complexa do ponto de vista social era, apesar disso, uma cidade muito humana e solidária, que vivia muito do centro, da baixa - que era um encantamento, cheio de cafés deslumbrantes, de teatros, de cinemas. E as pessoas resistiam. Dava ideia de que quanto mais opressivo era o ambiente mais o espírito das pessoas as levava a resistir através de actividades cívicas e culturais. Os territórios, constituídos pelas ruas e pelos bairros, eram locais estáveis e seguros. Eram territórios de vizinhança, onde toda a gente se conhecia. A ideia do bairrismo ? que agora os cosmopolitas parolos acham que é piroso ? é um valor moral, de amor e de apego ao bairro. Há um sentimento de nostalgia que perpassa por essa recordação do Porto e pelos seus livros. Concorda? Sim, mas eu acho que devemos manter a nostalgia pelas coisas belas, emocionantes, que dizem respeito ao sentimento humano. A nostalgia pelos grandes valores humanísticos que caracterizam uma sociedade e um tempo da nossa vida. Nostalgia por valores como a da família, que era um conceito extraordinariamente seguro, ter um avô (quem é que hoje tem um avô?) e um pai que contavam histórias ao serão e separavam continuamente o bem e o mal. A família era uma espécie de escola paralela à escola oficial. E a minha era um autêntico caldo de pluralismo: o meu pai era republicano, ateu, a minha mãe e a minha avó eram católicas e o meu avô era monárquico. Nostalgia pelo facto de se poder ir chamar os companheiros de brincadeira sem encontrar as portas trancadas e entrar como se fosse da casa. Era uma humanidade ao nível do rés-do-chão? Nostalgia pelo facto de a rua ser um sítio onde se brincava e crescia em segurança. Aprendi a distinguir com tudo isto que desde que o espírito do homem se sobreponha a um ambiente adverso é possível encontrar uma certa dose de felicidade. PENSAR A NOVA CIDADEDefende no seu livro que é necessário defender e repensar a ideia de cidade, afirmando, entre outras ideias, que ?a ditadura dos arquitectos tem de ser substituída pela sabedoria do senso prático? e que as decisões que a ela digam respeito não sejam meras ?operações de gabinete?. Que cidade temos hoje? Os portuenses continuam, apesar de tudo, a ter uma cidade extraordinariamente bela. Uma cidade com um património arquitectónico e urbanístico único, particularmente os bairros antigos e a baixa em geral. Entre São Lázaro, o Marquês e o Palácio e entre a Ribeira e a Foz temos, sem dúvida, uma das mais belas cidades da Europa. Percorrendo a freguesia de São Nicolau ? a única que se situa exclusivamente no interior das muralhas antigas ? pela rua das Flores, Largo de São Domingos, rua de São João, rua Mouzinho da Silveira e o Infante, praticamente não há uma casa que não tenha valor patrimonial. Depois, uma população com uma profunda ligação afectiva à sua cidade. Ser tripeiro era para muita gente uma condição de honra, um motivo de orgulho. Podia dizer-se grosserias, trocar os ?bês? pelos ?vês?, ser-se analfabeto, mas tinha-se um profundo amor à cidade e ao sítio onde se nascia. Nos últimos 50 anos, porém, houve erros calamitosos de gestão urbana, dos quais o primeiro foi arrasar um terço do bairro da Sé para dar lugar à avenida da Ponte, que ainda hoje é uma ferida aberta na cidade e levou ao êxodo de uma boa parte da população do centro histórico. Ao mesmo tempo, assistiu-se a uma política de erradicação das ilhas que, na minha opinião, não foi bem conduzido. As ilhas eram de facto locais insalubres, mas tinham aspectos sociais positivos que não foram levados em conta. As ilhas deviam ter passado por um processo de reconversão, requalificação ou reconstrução, mas mantendo as populações nos locais. Aconteceu que, em nome da salubridade, se começou a remeter essas populações para a periferia, criando bairros sociais que se transformaram em guetos e foram esvaziando o centro de pessoas. Foi uma política de resolução do problema da habitação completamente cega, surda, muda e incompetente. A par disto, o arquitecto francês Robert Auzelle, que é contratado nos anos sessenta para fazer o plano de urbanização da cidade, decide que a baixa passaria a ser exclusivamente dedicada ao sector terciário, em particular a bancos e escritórios. A partir desse momento está assinada a sentença de morte da baixa da cidade. Até mesmo os edifícios que foram construídos na baixa para habitação são ocupados por escritórios. É uma tendência que se mantém até hoje? Hoje nem tanto porque já ninguém quer escritórios na baixa. Matou-se a galinha dos ovos de ouro. Actualmente há bancos e sedes de empresas a fechar na baixa e mais ainda se afastou a população. A baixa da cidade é muito bela, praticamente intacta na sua identidade urbana e patrimonial, mas está despovoada, sem actividades comerciais e de lazer. Que cidade idealiza? Como havemos de ?melhorar o presente e salvaguardar o futuro?, para citá-lo? Aquilo que defendo é um renascimento urbano do Porto, mas para isso é necessário existir um plano estratégico para a cidade. E, nesse aspecto, temos inevitavelmente de acabar por falar na classe política. Há quem diga que cada país tem os políticos que pode, mas eu acho que cada país tem os políticos que merece. E o país merecia melhor. Infelizmente, nem toda a gente que tem categoria para a política segue essa via, levando a que, a nível autárquico, o país tenha sido mal gerido. O que tem sido feito em termos ambientais e de planeamento urbanístico é calamitoso. A política autárquica não tem que estar directamente relacionada com ideologias ou com cores políticas, mas antes com a qualidade de vida e com a felicidade das pessoas. Ou seja, as eleições autárquicas deveriam realizar-se em torno do debate de ideias e de projectos sobre a cidade e ninguém deveria poder ser eleito sem apresentar um projecto consistente e com objectivos claros. Ao Porto falta-lhe um grande projecto que o faça renascer. Em Portugal vivemos muito de uma política de realidade virtual, com projectos que se apresentam e nunca se realizam, ou quando se realizam não se destinam a atingir objectivos profundos de desenvolvimento. Um projecto para a cidade tem de assentar num grande desígnio de desenvolvimento. E desenvolvimento significa qualidade de vida: emprego, habitação, boa mobilidade, segurança, equipamentos culturais. Claro que não se pode exigir que em quatro anos se resolva os erros que se acumularam em cinquenta, mas qualquer altura é boa para começar. O SENTIMENTO DO PORTOComo se forjou a identidade que marca de forma tão indelével a cidade e os seus habitantes? Penso que há diversas razões históricas que concorrem para esse facto. Durante todo o período da Idade Média o Porto é uma cidade burguesa. Nunca teve aristocratas ? eles estavam, aliás, proibidos de viver no burgo, não podendo pernoitar mais de duas noites no seu interior. Era, por isso, uma cidade de comerciantes, de artesãos e de mesteirais, dedicada ao trabalho e ao comércio, o que lhe imprime desde logo uma marca particular de identidade. Por outro lado, é uma cidade onde a burguesia se habitua a governar a cidade. Durante séculos só os burgueses ou os seus descendentes podiam aspirar a ser vereadores. É também uma cidade que se habitua, logo desde a Idade Média, a estar permanentemente em oposição ao poder central. Em primeiro lugar ao Bispo e à Corte, defendendo os privilégios do seu Foral; em 1373, optando por D. João I e pelo partido de Portugal contra Castela; em 1640 na restauração da independência; em 1808 na primeira revolta contra a ocupação francesa; em 1820 na revolução liberal e, posteriormente, em todos os movimentos contra a retoma do poder absolutista. Ou seja, é uma cidade onde os ideais liberais estão profundamente enraizados. Creio ser Passos Manuel a dizer que com a Constituição de 1822 se implanta o regime republicano em plena monarquia? A revolução do 31 de Janeiro de 1891 representa, de certa forma, a cristalização de todos esses movimentos? A limitação do poder do rei e da nobreza, aliado à crescente democratização da sociedade, só poderia conduzir à República, não sendo por acaso que a primeira tentativa de derrube da monarquia parte do Porto, em 31 de Janeiro de 1891, saindo derrotada apenas porque o partido republicano, que estava sediado na capital e já tinha características centralistas, não podia aceitar um movimento que lhe tinha escapado das mãos. Não será também por acaso que em 3 de Fevereiro de 1927 se dá a última revolução do Porto, após o golpe militar que instaura a ditadura, que só não triunfa porque, mais uma vez, Lisboa se revolta a 7 de Fevereiro e, nessa altura, o Porto já se encontra subjugado e conta centenas de mortos. É curioso como os manuais de História se referem sempre a esta última data quando se sabe que a revolução se inicia no Porto? Estes factos históricos contribuirão provavelmente para a histórica rivalidade entre as duas cidades? Durante séculos não havia outro modo de transporte rápido do Porto para Lisboa que não fosse a via marítima. A esse propósito, João Grave diz que uma das piores coisas que pode ter acontecido ao Porto foi ter-se aproximado de Lisboa por comboio, porque a cidade queria era ligar-se a Paris? Actualmente, e para além dos seus problemas internos, o país enfrenta um totalitarismo centralista absurdo. Lamento que 30 anos de regime democrático tenham transformado Portugal num território muito mais centralizado do que se verificava no tempo do salazarismo. Referiu-se há pouco ao bairrismo que caracteriza o Porto. De onde surge esse sentimento tão portuense? Para responder a essa pergunta teremos de procurar entender outros traços da personalidade social da cidade. O Porto é uma cidade atlântica ? ventosa, chuvosa e húmida ? cuja geografia e clima são propícios a uma certa forma de intimidade e onde o ambiente familiar é preponderante ? o ?lar doce lar?, tão caro à burguesia portuense. Por outro lado, é uma cidade composta por muita gente oriunda de fora. Quase todos os tripeiros têm pais ou avós oriundos do Douro, das Beiras ou de Trás-os-Montes, sobretudo, mas também do Minho, embora em menor proporção. Essas comunidades, sendo relativamente fechadas, caracterizavam-se por ocupar bairros de acordo com a descendência, onde os filhos de uns casavam com as filhas de outros, onde um estranho era apontado a dedo, numa espécie de censura social baseada em questões de segurança. Estes comportamentos sociais traduzem uma forte ligação com o espaço do bairro, que era uma espécie de fortaleza ? eu, por exemplo, que nasci e cresci no bairro das Carmelitas, ao lado da Torre dos Clérigos, não brincava com os miúdos do bairro dos Caldeireiros, que ficava do outro lado da rua ? e o Porto era, no princípio do século XX, uma cidade com centenas de bairros. Eram territórios definidos, encarnados em determinados princípios e instituições: a igreja, as festas populares ? na cidade ainda hoje há dezoito festas locais e no início do século eram quase uma centena ?, os clubes, que, para além de centros desportivos ou recreativos, são também centros de convívio. É uma cidade que estrutura a sua vivência colectiva em torno de bairros e de comunidades, que provavelmente só estarão de acordo num princípio geral: o ser-se portuense ? ou portista, ou boavisteiro ou salgueirista, conforme a zona de proveniência. Todas estas características condicionam e moldam forçosamente a mentalidade das pessoas. Com a crescente transformação do Porto numa cidade região não se estarão a perder algumas dessas características? A identidade urbana do Porto mantém-se, mas os monumentos, só por si, não conferem identidade, é preciso gente. A identidade dada pela arquitectura é uma identidade de cenário. É pelo uso que se dá sentido à arquitectura. E o maior problema do Porto é um destes dias deixar de ter portuenses. Sem gente não há identidade. É preciso preencher a arquitectura com o pequeno comércio, com a habitação, com pessoas? Eu prefiro ver um bairro tradicional do Porto ocupado por pessoas de fora da cidade do que sem ninguém. De qualquer maneira, o bairrismo e o amor ao Porto que ainda subsiste em muitos locais da cidade são mantidos por uma população quase residual, que ainda resiste e vai permanecendo. Por outro lado, é curioso que em bairros completamente despersonalizados haja pessoas profundamente portuenses e bairristas, como é o caso de alguns amigos meus que, apesar de morarem em ?caixotes? modernos, transportam consigo estes valores. O amor à cidade nasce sobretudo porque há uma cidade arquétipa que é o Porto do centro, a baixa, o que também significa que, provavelmente, estaremos a viver uma certa identidade fictícia, continuando a viver de uma imagem ideal da cidade. Mas a verdade é que isso também ajuda a viver e a enraizar a consciência do ser-se portuense. O Porto é masculino ou feminino? O Porto é eminentemente masculino ? granítico, austero, nobre ? mas, apesar disso, provoca o paradigma de despertar tantos afectos e paixões como uma cidade com características femininas, vibrante de luz e de alegria. Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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