Querida Alice, Um colibri enviou-me esta carta. Mas é para ti. Revela a ternura que mora em ninhos perdidos nas serranias dos confins de um ignorado interior deste país de pássaros solitários, que o teu avô teve a sorte de conhecer num Abril de há dez anos. O colibri que me enviou esta carta não desiste de bater asas na direcção de um sonho, que é de hoje e de sempre, e que deu sentido à vida de muitas gerações de pássaros ensinantes e aprendizes: o sonho de educar seres mais sábios e mais felizes. Por razões que se adivinham, o teu avô hesitou em tornas pública esta carta. Mas acabou por pedir permissão à sua autora, para a expor aos olhos de outros pássaros. Apenas é acrescentada à carta uma data: Algures, em 25 de Abril de 2024 (quando lá chegares, compreenderás porquê). ?Querida Alice! Hoje quem te escreve não é o avô José, mas a história que vais ouvir também é uma história sobre aves. Deves estar curiosa em saber quem é essa desconhecida, que num dia qualquer de Primavera resolveu falar-te. Pequena Alice, esta história começa há uma década atrás. Lembra um encontro entre pássaros, num reino distante de quase tudo. Era o dia 24 de Abril de 1993. E, embora fosse Primavera, o reino distante e maravilhoso, como diria Miguel Torga, de que te falei, estava coberto por um grande manto branco de neve, uma surpresa para a passarada que se iria reunir naquela manhã de Sábado. Para os pássaros que viviam naquela terra, a neve não constituía problema. Como sabes, alguns animais adaptam-se a lugares diferentes do lugar onde nasceram, outros não sobrevivem à mudança, outros ainda sobrevivem, mas são eternos inadaptados. No caso dos pássaros, valem-se das suas penas para se protegerem do frio. Também é verdade que alguns de nós, como os colibris, somos mais relutantes em sair do ninho e, por vezes, ensaiamos duas ou três vezes para pôr o biquito de fora. Mas voltando à reunião? a razão era aprendermos técnicas de voo mais modernas, mais eficazes e mais audazes. Para isso, o líder do nosso bando conseguiu convencer a vir até aquela terra distante e fria uma gaivota que percebia da arte de voar como nenhum outro pássaro. Mas, e agora? ? pensávamos nós ? haverá ou não reunião? Será que a gaivota encontra o caminho no meio dessa brancura toda? E os outros pássaros resistirão ao frio? Com um pouco de atraso, a passarada conseguiu juntar-se, e a gaivota conseguiu chegar à clareira para a nossa primeira lição de voo. Era grande a ansiedade. Estávamos todos à espera de planos de voo milagrosos, que colmatassem todos os nossos problemas de ?gravidade?. Esperávamos que a gaivota nos olhasse com olhos de águia, que o bater das suas asas fosse semelhante ao pavonear de penas de alguns de nós, pássaros vaidosos, ignorantes da nossa própria insignificância. O que aconteceu a seguir deixou a passarada em alvoroço, pois contrariava as expectativas. A começar pelo aspecto da gaivota: calma, serena, olhar ao mesmo tempo doce e penetrante, como se fosse capaz de prever todas as inquietações que nos faria sentir a partir daquele encontro. Os seus trinados suaves e breves lançaram a confusão... Aquela gaivota trazia em cada pena uma interrogação. Era uma gaivota confusa. Dizia ela que ?precisávamos mais de interrogações que de certezas?. O sentimento no coração de alguns pássaros era de incredulidade. Outros sentiam-se indiferentes. E outros sentiam uma mistura de angústia e medo. Tínhamos a sensação de que há várias gerações tentávamos bater as asas de maneira errada. Era difícil para nós, pássaros solitários, convencer a nossa ninhada da alegria do voo. Mas seria possível à gaivota ?ensinar às areias e aos gelos a Primavera?? Há coisas que não podem ser ensinadas, coisas que têm que ser partilhadas. Há coisas que estão para além das palavras. A gaivota sabia disso. Sabia que ?palavras que ensinam são gaiolas para pássaros engaioláveis?, e que ?há coisas que não podem ser ensinadas, pois moram no mundo de dentro? de cada pássaro. Isso não impediu a gaivota de partilhar connosco algumas técnicas de voo acumuladas com a experiência e o bater de asas muitas vezes contrário a direcção do vento. Ela também sabia que a técnica poderia ser aprendida e que os voos solitários não eram os melhores. Outros encontros se sucederam, talvez porque a nossa amiga gaivota se tivesse deixado comover com o calor da hospitalidade que derreteu a neve que caía abundante?. O tempo passou... Algumas aves continuam a encontrar-se para aperfeiçoar o voo e ter lições de canto; outras esperam ventos de mudança e insistem num bater de asas mais modesto; outras ainda, deixaram-se engaiolar e estão cativas; existem ainda as que, tendo asas, rastejam, e as que preferem os voos mais baixos, mas menos felizes. A verdade é que a gaivota, juntamente com uma enorme carga de afecto, levou-nos também uma semente. Pois é, pequena Alice, nesta vida, alguns pássaros semeiam e outros colhem. Benditas as asas que semeiam!?
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