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Apagaram a luz ao fundo do túnel

LEI DE BASES

HÁ DOZE ANOS ESCREVI UM TEXTO A QUE DEI O TÍTULO DE «MANIFESTO A FAVOR DA REINVENÇÃO DO SISTEMA EDUCATIVO». FAZIA, NA ALTURA, O BALANÇO DOS PRIMEIROS ANOS DE APLICAÇÃO DA REFORMA ROBERTO CARNEIRO. A IDEIA QUE PRESIDIA AO «MANIFESTO» ERA A DE QUE OS SISTEMAS EDUCATIVOS, O NOSSO E OS DOS OUTROS PAÍSES, JÁ NÃO ERAM REFORMÁVEIS. ELES NASCERAM NO SÉCULO XIX, FAZEM PARTE DA AFIRMAÇÃO DA SOCIEDADE INDUSTRIAL E É NATURAL QUE MORRAM COM ELA. A NOVA SOCIEDADE NASCENTE EXIGE QUE SE INVENTE UM NOVO SISTEMA EDUCATIVO À SUA MEDIDA.

O velho sistema educativo, organizacionalmente, inspira-se no sistema militar. A escola assemelha-se ao quartel. O acto educativo, por seu lado, tem como fonte inspiradora o acto litúrgico da Igreja Católica. A aula tradicional não é mais do que uma missa. Comparem um quartel a uma escola e registem as semelhanças. Os soldados organizados em companhias e os alunos em níveis de ensino. As companhias divididas em pelotões e os níveis de ensino em turmas. As semelhanças entre os edifícios são tão grandes que facilmente se podem converter escolas em quartéis e quartéis em escolas. Em ambas as estruturas lá estão as casernas ou salas de aula, a porta de armas ou de entrada, o refeitório, o pátio ou parada, o espaço de comando. Não difere nem o número de soldados por quartel nem o de alunos por escola. Aos pelotões, de 30 a 36 soldados, ainda correspondem hoje, na escola,  as turmas com número semelhante de alunos.
A sala de aula, e o que lá se faz dentro, é uma capela pobre onde se fazem missas em regime intensivo. Lugares para os fiéis. Altar para o professor. O manual escolar ou a bíblia. O oficiante dono da palavra e os fiéis que a ouvem e respondem. A diferença é que a escola tem cada vez mais mulheres como sacerdotes e a Igreja, apesar da falta de recursos humanos, continua a afastar as mulheres do ofício.
Esta velha escola, ao mesmo tempo militar e religiosa, agoniza há muito tempo. Há quarenta anos que a tentam reformar sem sucesso. O que se espera é que se invente uma outra coisa onde seja possível produzir conhecimentos, aprender e ensinar. Este jornal, que nasceu destas inquietações, tem vindo a fazer o que pode no sentido de apontar outros caminhos para o sistema educativo.
Quando o actual Ministro da Educação, invocando a sociedade do conhecimento, afirmou ser necessária uma nova Lei de Bases da Educação (LBE), criou, pese a minha desconfiança política, alguma expectativa. Iria aparecer algo com futuro e capaz de romper com o sistema obsoleto que temos?
O ministro deu à luz, no Verão, uma LBE que, descaradamente, afirma ser coisa consensual e para o futuro! Uma desilusão. Definitivamente, apagaram a luz ao fundo do túnel. Se já estávamos na obscuridade com esta Lei ficamos às escuras.
A proposta de LBE não só mantém todas as velhas estruturas como deita fora alguns elementos de «modernidade» que os reformadores lhe tinham implantado com o tempo. Se o velho sistema educativo reproduz o modelo militar, esta proposta do Governo vem juntar-lhe alguns elementos inspirados no sistema prisional.
Este Governo, à semelhança do que acontece noutras áreas da sociedade, também na educação, em vez de nos fazer ir em frente põe-nos a andar para trás. A proposta é assumidamente selectiva e repressiva. Não há nela uma luz, uma réstia de esperança e de confiança. Só trevas e cilícios a impedir o movimento dos olhos e dos passos. Oferece-nos a miséria escolar como presente e a desgraça social como futuro. Esta gente que nos (des)governa admira o modo de vida dos vermes e detesta o dos pássaros. Quer uma escola onde se sofra, os alunos «marrem», os professores obedeçam e não sorriam, tudo comandado por um gestor de chibata em riste.
A proposta de LBE, apresentada pelo Governo do PSD e PP, tem por fundamento aquilo que nos últimos anos alguns têm designado por políticas gerencialistas. Os autores da proposta consideram que o principal problema das escolas de hoje é um problema de gestão. Afirmam que só uma liderança unipessoal e forte, de inspiração empresarial, orientada por critérios de racionalidade técnica e por conceitos de eficiência, competição e eficácia, poderão resolver e ultrapassar as dificuldades. Possuem a crença  ? pois é de crença e não de saber que se trata ? na superioridade da gestão empresarial privada. Acreditam que é possível e desejável, aplicar às escolas públicas os mesmos princípios com que se regem as empresas. Esta crença leva a apostar em medidas como a nomeação de gestores, a considerar os exames como finalidade última da educação, a amalgamar e não diferenciar a rede pública e privada, a valorizar «rankings» em função dos resultados dos exames, a fomentar a competição entre escolas, a tomar a avaliação como princípio e fim de todas as actividades escolares, a estabelecer um código de punições para quem não cumpra objectivos superiormente normalizados, tendo tudo isto em vista seleccionar os alunos para os diferentes patamares sociais e do trabalho. Trata-se, portanto, de organizar uma escola que promova as elites e penalize as massas. Uma escola que sirva um modelo social em que uma elite mande, domine e goze e uma maioria de pessoas cale, obedeça, e sofra.
Estas medidas não são novas. Chegam a Portugal, em nome do futuro, com mais de vinte anos de atraso. Experimentadas em muitos países nos anos oitenta, mostraram-se inúteis e incapazes de responder aos desafios da nova sociedade. Por isso foram em larga medida abandonadas mesmo por governos conservadores. Receitam-nos agora o passado em nome do futuro.
Portugal precisa, com a máxima urgência, de aumentar o nível educacional de toda a sua população. Precisa de aumentar a capacidade de intervenção na investigação científica. Precisa de qualificar as pessoas que sustentam o tecido cultural e produtivo. A sociedade do conhecimento é aquela onde todos os cidadãos, independente da sua inserção no tecido produtivo, têm um elevado nível educacional. É uma sociedade que não considera caro nenhum investimento no conhecimento e no saber.
É grave que esta LBE por força da maioria existente na Assembleia da República ? e também da incapacidade de a oposição reinventar e propor algo de novo ? vá ser aprovada. Portugal parece amaldiçoado. Temos sempre de copiar os erros e as virtudes caducas dos outros. Temos sempre de ir atrás. É o ciclo do nosso atraso. Uma população atrasada elege um governo atrasado que toma medidas atrasadas que promovem o atraso da população. Completa-se placidamente o círculo. Não há luz ao fundo do túnel.

 


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 128
Ano 12, Novembro 2003

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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