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A prenda

O LIVRO

A CONVERSA ACABARA NESSE MOMENTO, PARA RECOMEÇAR DUAS SEMANAS MAIS TARDE SOB A FORMA DE UMA PEQUENA PALESTRA.

Aqueles primeiros dias de aula não pareciam anunciar nada de bom. Lembrava-
-se, ainda, dos olhares de lado, dos resmunganços entre dentes ou do modo como alguns julgavam poder ignorá-la. Descobriram depressa que isso não era possível. Se através das  reprimendas breves, dos sermões severos ou dos olhares certeiros e duros ia obtendo algum efeito, era, sobretudo, através das actividades que lhes propunha e do apoio que estava disposta a prestar-lhes que, apesar de tudo, os esperava ir cativando. Não foram muitos os dias de glória. Mas se não eram a turma ideal, começaram a perceber, a pouco e pouco, que eram a sua turma e ela a compreender, apesar de todos os percalços, que era a sua professora. Em muitas daquelas manhãs que nunca-matam-
-mas-que-moem-que-se-fartam, acabaram por descobrir, todos eles, o que podiam e o que não podiam fazer. Apesar de nem sempre serem capazes, eles e ela, de cumprir o que haviam prometido. Corriam assim os dias. Feitos também de coisas surpreendentes, de alegrias súbitas, de coisas mais fundas que nem sempre se vislumbravam e de rotinas, chatices e traquinices várias que lhe mostravam como os milagres nunca acontecem quando mais precisamos deles.
O livro encontrava-se em cima da secretária. Depressa descobriu quem lho deixara ali. O seu António, o casmurro do seu António, oferecera-lhe aquela prenda. Uma pequena obra, de um autor desconhecido, sobre o Infante D. Henrique. Onde é que ele o arranjara ? Não se atrevera a perguntar-lhe. Andavam desde há uns dias de candeias às avessas e provavelmente aquele era um gesto de paz que ela não podia recusar. Agradeceu-lho sem saber que o pior ainda estava para vir, quando a Carlita lhe revelou, à saída, de onde viera a prenda. Da feira do livro e, ao que tudo indicava, surripiada com mão de mestre.
Deixou os dias passar, silenciosamente, sem saber o que fazer. Rondava-o à distância, espiava-o e hesitava todas as vezes em que o pretendia interpelar acerca da proveniência do livro. Se não era mulher para se encolher, nem podia continuar a fazer de conta que nada se tinha passado, também não podia passar uma esponja sobre o significado daquela oferta. Deu voltas e mais voltas à cabeça, sem se atrever a pedir conselhos a ninguém.
Já leu o livro, minha senhora ? - Tinha acabado de ser apanhada à traição.
Engasgou-se, mas conseguiu dizer-lhe que sim. Era quase verdade. Um livro desinteressante e lido em diagonal que não valia, de facto, nem a décima parte de toda aquela chatice. Viu-o a dirigir-se para a porta. 
Ó António, porque é que me deste esse livro ? ? Foi o melhor que conseguira arranjar.
Porque os professores precisam dessas coisas para nos ensinar.
A conversa acabara nesse momento, para recomeçar duas semanas mais tarde sob a forma de uma pequena palestra. O Infante D. Henrique em quinze minutos de conversa da treta que aquela trupe ouvira com uma atenção inédita. Tinha conseguido fugir com o rabo à seringa, ganhara um livro medíocre e oferecera aos seus alunos uma aula tão apreciada quanto inútil. Há dias assim. Luminosos e absurdos.       


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 124
Ano 12, Junho 2003

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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