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Leitura flutuante

Após mais de 100 anos de Vygotsky, Piaget e Freinet, relatarei a experiência nascida da mesma inquietude que eles demonstraram ter diante das adversidades no campo do conhecimento. Freinet, em particular, incentivou o convívio da escola com a biblioteca, idealizando-a como centro de cultura organizado em cantos de leitura, de documentação, de impressora, de material audiovisual, de exposição, de escritório, de reuniões... Uma biblioteca e tanto!

Se não é possível realizar o idealizado, a alquimia do «querer-fazer» e a magia da força de vontade tornam viável a construção do pedacinho do sonho ou, aqui pelo menos, a construção do ?cantinho do canto da leitura?, no qual, mesmo estando no mais adverso dos ?solos?, veremos nascer os frutos desta árvore tornada livro, tornada barco!
A Escola Municipal Pedro Soares, em Provetá, Ilha Grande, Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Brasil, resguarda em seu cotidiano um perfil atípico em relação às do continente. Por estar na Ilha, voltada para o mar aberto, lida com a constante adversidade climática. Atende os alunos da C.A. a 8ª série de Provetá como também os de 9 praias vizinhas. O seu corpo docente também é atípico: se mobiliza de diversos municípios do Estado do Rio de Janeiro, desde o dia anterior, para estar às 5:00 no Cais de Santa Luzia, a fim de embarcar no ?Irmãos Unidos II? - barco alugado pela Prefeitura - e realizar uma viagem que só terminará às 8:10 em Provetá, ou seja, um pouco mais de 3 horas de viagem pela Baía da Ilha Grande.
Do outro lado da baía, os alunos das praias anteriores à de Provetá se encaminham para os cais, enquanto os que moram além, na Praia do Aventureiro, dão início a sua caminhada diária de 90 minutos até a escola.
O convívio no barco é enriquecido pelas situações apresentadas: tirar dúvidas escolares; esclarecer um ponto da matéria; entregar uma tarefa não terminada em sala ou fazer questionamentos espontâneos possibilitados pela própria viagem, e, sobretudo, pela troca de experiências entre professores, alunos e tripulantes.
O caráter atípico e a diversidade de clientela numa mesma escola nos revelaram a carência de informações em todos os níveis - cultural, científico e literário. E dois fatos se fizeram notar: a ausência de tempo para que os alunos das praias vizinhas pudessem freqüentar a biblioteca da escola (por estarem comprometidos com o horário do barco) e a avidez com que folheavam durante a viagem os jornais, as revistas e os livros trazidos aleatoriamente pelos professores. Isto impulsionou Gladymar Ramin (Inglês), Jorge L. Ferreira (Ciências), Marco A. da Silva (Língua Portuguesa) e eu (Língua Portuguesa) para a criação de algo sistemático.
Decidimos minimizar a dificuldade de acesso à leitura e incentivar a existência do aluno-leitor criando uma biblioteca no meio de transporte marítimo onde as crianças, de acordo com a localização de sua praia de origem, passam de 2 a 4 horas por dia letivo. Divulgamos esta intenção durante 2 dias e recebemos 24 títulos. O pontapé inicial havia sido dado e, aos 2/12/94, nascia a «Biblioteca do Barco e seu Convés de Leitura: Espumas Flutuantes», em homenagem ao poeta Castro Alves.
Seu acervo foi ampliado por mais doações e pela premiação do 3º lugar no II Concurso «Os Melhores Programas de Incentivo à Leitura entre jovens e crianças de todo o Brasil», promovido pelo Programa Nacional de Incentivo à Leitura ? PROLER, pela Fundação Nacional do Livro Infanto Juvenil ? FNLIJ e pela Fundação Biblioteca Nacional ? FBN. O prêmio foi entregue pela escritora Ana Maria Machado, que tornou-se madrinha do Projeto e prometeu doar-lhe a sua obra completa.
A «Biblioteca Espumas Flutuantes» atualmente possui 1035 títulos, de todos os gêneros literários, além de gibiteca e brinquedoteca humildes.
A importância desta experiência de 8 anos de existência se fundamenta na consciência de não poder deixá-la escapar por entre os dedos feito a água que banha, presenteia e isola a Ilha Grande do continente. Assim, quando o vento sopra ameno nos cabelos do ilhéu-leitor, ele pode viajar tranqüilo pelo mar da imaginação nesse barquinho de papel chamado livro!


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

Virgínia de Oliveira Silva
Univ. Federal Fluminense, UFF, Brasil
Virgínia de Oliveira Silva
Univ. Federal Fluminense, UFF, Brasil

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