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A missa negra

(para conhecer melhor o Brasil que Lula herda)
*

?Às dezessete horas da sexta-feira, 13 de dezembro do ano bissexto de 1968, o marechal Arthur da Costa e Silva, com a pressão a 22 por 13, parou de brincar com palavras cruzadas e desceu a escadaria de mármore do Laranjeiras para presidir o Conselho de Segurança Nacional, reunido à grande mesa de jantar do palácio. Começava uma missa negra. Composto por ministros demissíveis ad nutum, o Conselho sempre fora uma ficção. Suas decisões, sem a chancela do presidente, nada valiam. Sua competência legal para tratar da matéria levada à suposta consulta era nula.
O marechal deteve-se na porta do salão, conversando baixo com o vice-presidente Pedro Aleixo, que acabara de chegar de Belo Horizonte. Demoraram-se por quase meia hora. Quando Costa e Silva ocupou a cabeceira da mesa, cada ministro tinha uma cópia do Ato Institucional nº 5 em frente a seu lugar. Dois microfones, colocados ostensivamente sobre a mesa, gravariam a sessão. A sala estava tomada pelo barulho de sirenes de veículos que circulavam no pátio da mansão.
O presidente abriu a sessão com um discurso em que se denominou "legítimo representante da Revolução de 31 de março de 1964" e lembrou que com "grande esforço [...] boa vontade e tolerância" conseguira chegar a "quase dois anos de governo presumidamente constitucional". Ofereceu ao plenário "uma decisão optativa: ou a Revolução continua, ou a Revolução se desagrega". Batendo na mesa, anunciou que "a decisão está tomada" e pediu que "cada membro diga o que pensa e o que sente". Era o primeiro discurso desconexo daquela sessão presidida pela determinação de proclamar uma ditadura. O marechal suspendeu a reunião por vinte minutos, para que cada ministro lesse o texto, e desculpou-se pela pressa. Com um preâmbulo de seis parágrafos, o Ato tinha doze artigos e cabia em quatro folhas de papel. Sua leitura atenta exigia pouco mais que cinco minutos. Costa e Silva retirou-se debaixo de aplausos.
Na volta, deu a palavra ao vice-presidente Pedro Aleixo, respeitado liberal da udn mineira, conhecido tanto pela sua retidão como por uma solene tibieza. Sereno e com elegante pronúncia, Pedro Aleixo falou como se estivesse numa sala de aula da faculdade de direito. Defendia simultaneamente o regime constitucional e sua biografia. Mais esta que aquele. Começou ensinando que a Câmara só poderia ter dado a licença para processar Marcio Moreira Alves se agisse com base num critério político, pois não poderia fazê-lo "segundo as normas do direito aplicáveis ao caso". Ou seja, o "insólito agressor da dignidade dos elementos componentes das Forças Armadas" não podia ser processado pelo conteúdo de um discurso proferido da tribuna. O vice-presidente declarou-se favorável a um remédio constitucional ? o estado de sítio ? e denunciou o conteúdo do Ato que acabara de ler: "Da Constituição, que é antes de tudo um instrumento de garantia dos direitos da pessoa humana, e da garantia dos direitos políticos, não sobra [...] absolutamente nada". "Estaremos [...] instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura."
Falara o respeitado bacharel, mas cabia ao vice-presidente concluir. Com a ditadura na mão, prosseguiu: "Todo ato institucional [...] que implique na modificação da Constituição existente, é realmente um ato revolucionário. Que se torne necessário fazer essa revolução, é uma matéria que poderá ser debatida e acredito até que se pode demonstrar que essa necessidade existe". Admitiu que se o estado de sítio viesse a se mostrar insuficiente, "a própria nação [...] compreenderia a necessidade de um outro procedimento". Despediu-se reafirmando obliquamente sua discordância e, dirigindo-se a Costa e Silva, anunciou sua "certeza de que estou cumprindo um dever para comigo mesmo, um dever para com Vossa Excelência, a quem devo a maior solidariedade". Em nenhum momento Pedro Aleixo disse diretamente que condenava a promulgação do Ato. O bacharel denunciou a ditadura, mas nela se manteve vice-presidente.
Acabamos de ouvir a palavra abalizada do vice-presidente [...], da qual discordo absolutamente", emendou o almirante Augusto Rademaker, ministro da Marinha. Era expoente da linha dura na Armada. Militante integralista nos anos 30, membro do comando revolucionário de abril de 1964, tomara dois dias de cadeia durante o mandato de Castello por ter criticado o governo. Ganhara o cargo depois de ter passado dois anos numa escrivaninha de adido ao gabinete do ministro. "O que se tem que fazer é realmente uma repressão", acrescentou. O marujo foi às águas do direito constitucional e argumentou que "o recesso, a meu ver, não requer estado de sítio, por enquanto". Naufrágio, pois pela Constituição ainda vigente o estado de sítio nada tinha a ver com o recesso parlamentar, que nem sequer poderia ser decretado durante sua duração.
Entrou o ministro do Exército, Lyra Tavares: "Nós estamos agora perdendo condições [...] de manter a ordem neste país". E ameaçou: "É preciso assinalar que foi com grande sacrifício que as Forças Armadas, particularmente o Exército, guardaram até aqui, como fato inédito na história política do Brasil, o seu silêncio, à espera de uma solução, e convencidos ? todos os quadros ? de que não pode deixar de haver essa solução" (?)

* excerto do primeiro volume (de uma série de cinco)  da obra do jornalista Elio Gaspari que reconstitui o período da ditadura brasileira. Neste primeiro volume do início do governo militar, em Março de 1964, até a edição do Ato Institucional nº 5, em 1968.

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 8535902775
Ano: 2002
Volume: 1
Edição: 1
Número de páginas: 424


  
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Redacção

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