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?O furto, por regra, é praticado como um acto de carência afectiva?

Francisco Maia Neto, procurador da República coordenador do Ministério Público no Tribunal de Família e Menores do Porto, fala de delinquência juvenil

Estruturas estatais vivem de costas voltadas

?A falta de cultura de interacção leva a atrasos tremendos nas respostas?

Dar resposta à reinserção social de um menor ? seja nos casos de abandono ou de delinquência ? requer uma acção multidisciplinar entre diferentes instituições. Mas entre tribunais, direcções regionais de educação, administrações regionais de saúde, segurança social, centros de emprego e institutos de reinserção social há apenas um ?diálogo de surdos? contesta Francisco Maia Neto.
A ausência dos altos responsáveis dessas estruturas, ao nível municipal, nas reuniões convocadas pelo tribunal e a excessiva comunicação por ofício, são exemplos de que algo corre mal, diz o procurador da República coordenador do Ministério Público no Tribunal de Família e Menores do Porto. ?A falta de cultura de interacção leva a atrasos tremendos nas respostas?, lamenta. ?O  problema ? diz ? é que depois, a responsabilidade é de todas as instituições mas não é de ninguém!?
Maia Neto queixa-se da falta de dinamismo entre as várias instituições quando estas são obrigadas a encontrar soluções conjuntas e pede uma responsabilização ao mais alto nível: ?O director da Administração Regional de Saúde do Porto tem de responder porque é que não há consultas de pedopsiquiatria; o director da Direcção Regional de Educação do Norte tem de me responder porque é que não funcionam os currículos alternativos.? A par desta reivindicação, o magistrado lança uma outra: ?É  o director quem tem de vir às reuniões alargadas [convocadas pelo Tribunal de Menores] onde tem matéria e número para trabalhar.?
As dificuldades de funcionamento e a falta de meios nas estruturas municipais das instituições seriam, na opinião de Maia Neto, ultrapassadas se houvesse por parte dos seus directores coragem para as reclamar. ? Se os directores viessem às reuniões dizer não há, não fazemos, se calhar já nos tínhamos todos empenhado em criar alternativas.? E continua a dar exemplos: ?Temos currículos alternativos há dez anos, mas sabemos que eles não funcionam há dez anos e ainda ninguém se dignou a mudar o sistema!? Ao contrário, ?o que temos feito é meter a cabeça debaixo da areia e mandar os hierarquicamente inferiores dizer que não há?, acusa o magistrado.

Nos últimos dez anos, os meios urbanos foram férteis na criação dos chamados gangs de menores. Desde os pequenos delitos, aos assaltos em bando a automóveis e aos chamados ?correios da droga?, estamos ? dizem os criminologistas ? cada vez mais perante uma criminalidade juvenil organizada muitas vezes pelos adultos. Só na área do Porto estão registadas 770 participações de actos criminais praticados por menores. As causas deste fenómeno são várias. Francisco Maia Neto conhece-as bem dos processos que trata diariamente há dois anos no Tribunal de Família e Menores do Porto. O procurador da República coordenador do Ministério Público enquadra o fenómeno da delinquência juvenil no abandono generalizado de que os menores são vítimas. Abandonados pelos pais, pelo sistema educativo, sem idade para trabalhar, estes jovens habitam as ruas ? alerta Maia Neto ? e crescem ?sem motor de arranque.?

Em termos legais, onde é que se enquadra a delinquência juvenil?

A partir dos 16 anos já se é maior em termos criminais. Por isso, a delinquência juvenil diz respeito aos crimes cometidos por menores entre os 12 e os 16 anos. Até ao fim de Dezembro de 2000 a lei tratava igualmente os menores em perigo e os menores delinquentes. Um menor abandonado pelos pais era colocado no mesmo colégio [de correcção] que um menor que praticava furtos todas as semanas. A partir de Janeiro de 2001, as novas leis tutelares dividiram-se entre a Lei Tutelar Educativa (Decreto Lei n.º 166/ 99 de 14 de Setembro) que define o que se faz aos menores delinquentes entre os 12 e 16 anos e a Lei dos Menores em Perigo (Lei n.º147/99 de 1 de Setembro). Agora temos colégios para menores que cometem crimes separados dos menores que estão acolhidos.

É possível identificar os factores que originam a entrada destes menores na criminalidade?

A delinquência juvenil entre os 12 e os 15 anos é consequência de um relativo abandono afectivo dos menores em tenra idade. Só agora a pedopsiquiatria, a psicologia e a pediatria nos estão a chamar a atenção para este facto. Estamos a gastar milhões de contos na reinserção de menores com 14 e 15 anos quando os deveríamos ter gasto com o apoio directo à maternidade e à família nos primeiros anos de vida porque é aí que se define a delinquência mais tarde.
O furto, por regra, é praticado como um acto de carência afectiva. Quando não se é afectivamente preenchido por dentro procuram-se bens. Até um adulto se estiver carente, do ponto de vista afectivo, sai à rua com o seu cartão de crédito e encharca-se de compras. Isto é, procura no exterior o que lhe falta no interior. Mas o dramático é que o que falta a estes meninos falta-lhes hoje e vai continuar a faltar-lhes o resto da vida.
Outras causas da criminalidade são o abandono escolar e a inactividade. Como os pais não estudaram, não vêem necessidade em que os filhos estudem. Além disso, muitos destes pais são subsídio ? dependentes: vivem à custa da Segurança Social e do subsídio de desemprego, ficam na cama até ao meio-dia? Assim, como é que os filhos se hão-de levantar às oito da manhã para ir para a escola? Além disso, estes miúdos ? com 13 e 14 anos ? estão na rua e deitam-se à meia-noite! Depois há a falta de atenção por parte dos pais, algumas razões económicas e sobretudo a desmotivação. Já tenho ouvido dizer da boca de muitos miúdos ? ?Eu quero ser desempregado permanente??

Como é que os pais reagem à delinquência dos filhos?

Os pais não conseguem perceber como é que os filhos atingiram aqueles níveis [de delinquência] quando lhes deram mais do que o que lhes foi dado a eles. Mas esquecem-se que eles formaram-se na rua, mas viveram em comunidades agrícolas e de trabalho em que os pais e os filhos andavam sempre juntos. Agora, ao terem mais bens, mas ao viverem mais isolados, os pais abandonaram os filhos afectivamente sem perceber. Por isso ficam chocados e pedem-nos [Tribunal de Menores] ajuda para os encaminhar. Mas as respostas que o Tribunal de Menores tem são respostas de fim de linha de um percurso mal feito e se calhar a percentagem de recuperação é muito pequena.
Temos de rever toda a formação dos miúdos e criar uma política concreta de apoio à família: ao pai e à mãe ? para estar nos primeiros anos não a trabalhar mas junto do filho. Se o Estado pagasse para uma mãe não trabalhar durante os primeiros três anos, pode ter a certeza que gastava muito menos do que a tratá-los depois aos 13/14 anos. Que não trata nada. A eficácia é muito menor e o gasto muito maior. Economicamente o Estado não está a fazer bem as contas. É mais fácil pagar a uma mãe para estar em casa até formar a estrutura do menino, do que perdê-lo [por falta dessa estrutura] e mais tarde tentar recuperá-lo.
 
As respostas educativas para estes menores passam sobretudo pela via profissionalizante, não estaremos a baixar a fasquia educativa?

Estes miúdos são apanhados com o 5º, 6º e 7º ano de escolaridade aos 15 anos e com uma vivência de rua já muito estruturada, ou seja, têm mais vícios do que regras e não se adequam a elas. É muito difícil pôr a fasquia mais elevada. Perante estes miúdos o que fazemos é procurar os cursos profissionais com mais saída no mercado, que são os de informática e de hotelaria. Existem muitos miúdos que gostariam de ser encaminhados para outros cursos, como a mecânica de automóveis e a carpintaria, mas estas áreas profissionalizantes não estão suficientemente desenvolvidas. Há aqui um problema com as respostas dos Centros de Emprego e Formação Profissional.
Quando fala em fasquias eu penso que deveríamos ter, a partir do 6º ou 7º anos, uma alternativa pragmática de ensino. Os miúdos que chumbassem duas ou três vezes nesses anos deviam poder optar, logo aí, por uma via profissionalizante, mas dentro da escola. Isto é, numa escola parecida com a [antiga] escola industrial ou comercial. Na prática, seria preciso institucionalizar escolas com currículos alternativos e fazê-lo sem preconceitos. Em vez disso, estamos com uma via única de ensino até ao 9º ano e tudo indica que será alargada até ao 12º ano. Se temos 30/40% de abandono escolar até aos 15 anos, vamos ter para aí 60% daí para fora! Por isso, espero que escolham outra via, para não deixar muita gente na rua que depois vai para a criminalidade.

Reduzir a imputabilidade criminal para os 14 anos ? como foi já proposto em 2000 num projecto-lei apresentado pelo Partido Popular ? parece-lhe uma medida razoável no combate à criminalidade juvenil?

Depende de como o fizermos. A Irlanda tem imputabilidade aos 7 e 8 anos, mas o problema é saber o que é que eles fazem nessas idades? Reduzi-la sem mais dos 16 para os 14, acho que não. Porque então a situação social seria dramática. Concordo que intervenha judicialmente no caso menores delinquentes mais cedo porque a capacidade hoje de um menor de 14 anos é muito maior do que há 30 anos atrás ao nível da criminalidade. Não é com prisões, nem ameaça de prisão, que se resolve o problema da delinquência juvenil, é com leis próprias adequadas à idade do menor que o reinsiram na vida activa. O que é preciso é dar-lhes uma educação de regras de vida, de disciplina, limites, mas também de empatia e carinho, ora isto não tem nada a ver com o sistema prisional. Por isso, penso que as respostas previstas na lei estão bem definidas.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 118
Ano 11, Dezembro 2002

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Francisco Maia Neto
Procurador da República; Coordenador no Ministério Público no Tribunal de Família e Menores do Porto
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Francisco Maia Neto
Procurador da República; Coordenador no Ministério Público no Tribunal de Família e Menores do Porto

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