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Dos cantos de sereia...

O essencial não é o conveniente reconhecimento, por parte do ministro, da existência de um mundo e de um tempo para lá da escola, onde cada um possa ?fazer tudo aquilo que um jovem dessa idade deve fazer e não faz?, que resolve a questão de um Ensino Secundário cujo sentido absurdo só pode ser encontrado, quando pode, a jusante, no momento em que permite decidir o acesso dos seus alunos ao Ensino Superior.

Numa entrevista à ?Visão? (07.11.2002), o ministro David Justino afirmou publicamente a sua adesão ao propósito de alargar a escolaridade obrigatória até ao 12º ano, passando a engrossar, assim, a fileira daqueles que desde há uns anos a esta parte têm vindo a defender a adopção de uma tal medida. Sendo este um ministro de um governo de uma maioria de direita, sabendo nós que, por exemplo, o Bloco de Esquerda veio há dias defender a existência de treze anos de escolaridade obrigatória e que uma organização como a FENPROF se tem vindo a bater pela obrigatoriedade da frequência  do 12º ano, é caso para dizer, então, que nos encontramos perante uma medida educativa cuja implementação parece reunir, hoje, o mais amplo consenso na sociedade portuguesa. Consenso este que só por si bastaria, se mais razões não houvesse, para justificar a necessidade de se clarificarem as posições acerca da tão pretendida universalização do Ensino Secundário.
O ministro, nessa entrevista, tentou fazê-lo enunciando algumas das razões que sustentam a sua posição. Apesar das evidentes lacunas de uma reflexão pouco sustentada e bastante trapalhona, importa, contudo, não desvalorizar o pensamento do Dr. Justino sobre a matéria, tentando distinguir, também neste âmbito, o acessório do essencial. E o essencial passa pela necessidade de reconhecermos que este governo tenta iludir a política de desinvestimento adoptada face, entre outras áreas, à área da educação, anunciando através da voz do seu ministro, um conjunto avulso de medidas (no imediato, o fim das provas globais e a introdução de novos onze programas ou, a prazo ?quem sabe ? - a redução do número de disciplinas e do número de exames, bem como a criação de disciplinas dedicadas às Tecnologias de Informação) que não podem constituir as decisões capazes de sustentar a transformação do Ensino Secundário num nível de ensino terminal e credível. O essencial passa, também, pela necessidade de reconhecermos, igualmente, o papel incontornável que o próprio ministro assume nesta estratégia de marketing político, uma das razões que, entre outras, talvez contribua para explicar porque é que assumiu, publicamente, uma perspectiva tão incipiente acerca do Ensino Secundário. É que, e tendo como referência a proposta de revisão curricular do anterior governo, não é a diminuição do número de cursos gerais e do número de opções nos cursos tecnológicos que, em substância, vai mudar o que quer que seja. Não é também o conveniente reconhecimento, por parte do ministro, da existência de um mundo e de um tempo para lá da escola, onde cada um possa ?fazer tudo aquilo que um jovem dessa idade deve fazer e não faz?, que resolve a questão de um Ensino Secundário cujo sentido absurdo só pode ser encontrado, quando pode, a jusante, no momento em que permite decidir o acesso dos seus alunos ao Ensino Superior. Do mesmo modo que nada poderia mudar quando se anuncia que continua a haver uma área de formação humanístico-científica vocacionada para promover o acesso ao Ensino Superior e se tenta distinguir o ensino tecnológico do ensino profissional nos termos em que o ministro o faz. ?Não podemos ter os dois a concorrer na mesma área. (...) A via tecnológica permite o acesso ao ensino superior mas também tem a inserção no mercado profissional. A via profissional privilegia a inserção no mercado de trabalho não pondo de parte a possibilidade de ingressar no ensino superior?. 
Mas mais do que saber o que é que se pode esperar do personagem que é responsável por um tal discurso, importa não ser ingénuo e compreender as consequências pessoais, sociais e políticas da universalização de um Ensino Secundário sujeito a tais premissas. É que, a continuar-se a aceitar o actual figurino que permite configurar este nível de ensino - o qual se caracteriza, grosso modo, quer pela sua subordinação ao Ensino Superior quer pela sua uniformidade pedagógica e curricular quer, finalmente, pela ausência de qualquer tipo de sentido formativo credível - o alargamento da escolaridade obrigatória constituirá, inevitavelmente, uma decisão que irá agravar o processo de exclusão social daqueles adolescentes para os quais a escola é e continuará a ser, também pelas razões acabadas de enunciar, uma instituição estranha e inútil. Nestas circunstâncias, muitos alunos terão duas hipóteses à sua escolha, o abandono em circunstâncias penosas ou, na versão mais optimista, a realização de um curso inútil, de terceira categoria, organizado para parquear quem for obrigado, por qualquer razão, a aceitar esta opção.  
Esperemos pois que nós, os que nos posicionamos na esquerda política e sindical, saibamos e estejamos dispostos a travar este combate, sem ficarmos à mercê do canto de sereia do ministro que ao acenar-nos com a universalização do Ensino Secundário sabe que nos confronta quer com o nosso voluntarismo pedagógico quer com os nossos interesses corporativos. Decisões precoces neste âmbito, por mais sedutoras que possam parecer, iriam penalizar não só os alunos, como ainda muitos professores, acossados em salas de aula transformadas em trincheiras.   
O alargamento da escolaridade obrigatória para doze anos só poderá acontecer no dia em que possuirmos um mínimo de garantias políticas, institucionais, curriculares e pedagógicas que permitam às escolas secundárias definirem-se mais como espaços educativos do que como espaços de certificação escolar. O que ainda não é o caso, como se pode comprovar pelas elevadas taxas de abandono escolar no 10º ano e pelo impasse educativo em que se encontra o Ensino Básico quanto às suas finalidades e às dinâmicas de formação que aí se desenvolvem.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 118
Ano 11, Dezembro 2002

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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