"Não basta ir à escola. - É preciso
aprender nela”
Lembra Bernard Charlot, professor universitário em Paris, numa entrevista
à Página
Bernard Charlot é professor de Sociologia da Educação
na Universidade de Paris VIII tem trabalhado, em França e no Brasil,
em diversos projectos com alunos dos bairros populares, investigando a relação
entre os jovens e o saber. Outra das áreas de investigação
em que está envolvido relaciona-se com a territorialização
das políticas educativas nos países do sul da europa, na qual
participam também as faculdades de Psicologia e de Ciências da
Educação de Lisboa e do Porto. É autor de diversos livros,
de entre os quais se poderá destacar "A Relação com
o Saber em Meios Populares". Integra a comissão organizativa do
Forum Social da Educação, que terá lugar em Porto Alegre
no âmbito do Forum Social Mundial.
Em que questões baseia actualmente a sua investigação?
Uma primeira linha de investigação incide na relação
dos alunos com o saber e com a escola, com especial incidência nos bairros
populares franceses e brasileiros. A segunda prende-se com a territorialização
das políticas educativas, principalmente no que respeita aos Territórios
Educativos de Intervenção Prioritária, que, em França,
contam já com uma experiência superior a vinte anos.
Sei que foi autarca da Mairie (Câmara Municipal)
de Saint-Denis, um bairro de características populares e industriais
da periferia de Paris, onde actuou na área da educação.
Que experiências retirou desse trabalho?
Tive a oportunidade de viver situações que não
podia ter vivido enquanto pesquisador, já que participei em alguns conselhos
de escolas como representante da Câmara Municipal e não como sociólogo.
Alguns professores conheciam-me, outros não. Os docentes falavam com
toda a liberdade, coisa que provavelmente nunca fariam frente a um investigador.
Tive a oportunidade de constatar como as lógicas heterogéneas
dos pais de um meio popular e dos docentes de classe média são
diferentes e como às vezes se criam situações de conflito
a partir dessas duas realidades distintas. Não importa saber qual das
partes está certa ou errada, porque isso é uma apreciação
subjectiva. O importante é constatar a existência de duas lógicas
e entender como se pode ultrapassar esse conflito.
Estou a fazer o mesmo trabalho com jovens, que também possuem lógicas
heterógeneas fortes e não compreendem que o outro pode ter uma
lógica própria. É nesse sentido, nomeadamente, que a lógica
de aprendizagem não tem o mesmo sentido para o professor e para o aluno.
Na lógica do professor aprender passa pela apropriação
de um conteúdo intelectual e pela capacidade de repeti-lo. Na lógica
do jovem aprender é passar muito tempo agarrado a livros e cadernos;
aprender é passar tempo. É uma relação social. Tal
como os pais recebem um salário de acordo com as horas de trabalho, o
jovem que dedica muito tempo a uma tarefa está à espera de ser
reconhecido pelo seu trabalho. E quando esse reconhecimento, em forma de nota,
não corresponde à expectativa, ele considera isso uma injustiça.
E isso pode constituir uma fonte de violência.
De que forma conciliar essas lógicas distintas?
Enquanto pesquisador respondo que não sei. Não tenho
nenhum direito de dizer aos professores o que eles devem fazer, porque trabalham
num contexto específico e têm de agir e decidir de acordo com esse
contexto. O professor é uma pessoa que deve decidir no imediato e assumir
a decisão. Essa é uma das principais características de
um bom profissional, que não se pode ensinar no centro de formação.
O papel do pesquisador é o de produzir inteligibilidades sobre as situações
e ajudar os docente a entender melhor o quotidiano da sala de aula. Não
é possível estabelecer "receitas", digamos assim.
De qualquer forma, diria que primeiro passo seja permitir que cada um compreenda
que o "outro" tem uma lógica própria. O professor deve
entender que os alunos não são tolos, ou "selvagens",
apesar de por vezes dizerem coisas menos acertadas. Os alunos questionar-se-ão
porque razão ganham os professores um salário e eles não.
Ou porque razão a escola sanciona a sua ausência. Os alunos têm
uma lógica própria e o professor deve procurar entendê-la.
Tal como o professor possui também uma lógica que o aluno deve
reconhecer. E se cada um admitir que possui uma lógica legítima,
o conflito de interesse não irá tornar-se numa luta emocional
que parte da ideia que o "outro" é um "selvagem"
ou um "injusto", etc...
Penso que se deve aprender a viver o conflito através das palavras. Geralmente,
os professores sabem fazer isso, mas os jovens dos meios populares não
sabem. Uma adolescente belga disse uma vez uma coisa muito interessante: os
professores sabem insultar polidamente. Isto é verdade. O jovem não
sabe insultar polidamente e no caso de um conflito ele tende a agredir o professor.
Talvez se devesse ensinar o aluno como insultar polidamente o professor... (risos).
Neste aspecto, não tenho dúvidas de que trabalhar as práticas
de linguagem numa situação de conflito parece-me uma das soluções
para diminuir a violência na escola.
Conflitos de interesses que, aos poucos, parecem caminhar
para um crescente uso da violência. A escola era tida como um dos locais
mais seguros da sociedade, hoje isso já não é assim...
A violência existiu desde sempre na escola. Ignoro o percurso
de Portugal nessa matéria, mas já no século XIX, nos liceus
da burguesia do centro de Paris, houve grandes revoltas que levaram à
prisão de muitos jovens.
Mas não seria uma violência de carácter
marcadamente ideológico, ao contrário do que hoje sucede?
Geralmente não. O que é novo em França, tal como
em outros países, não é a existência da violência,
mas antes os graus extremos que ela pode atingir, e que em certos casos podem
mesmo levar à morte. Mas esta forma de violência é rara.
Outra das novidades é o facto de os jovens que praticam actos violentos
serem cada vez mais novos, na faixa etária entre os 8 e os 13 anos. Depois,
não podemos esquecer as pessoas exteriores à escola, na maioria
dos casos jovens da própria área envolvidos em lutas de bandos,
ou os próprios pais, que desencadeiam situações de violência.
Estatisticamente, são os encarregados de educação, e principalmente
as mães (risos), que batem mais nos professores...
São pequenas situações, aparentemente insignificantes,
que se vão acumulando e chegam a pontos onde se instala a angústia.
Mas não nos devemos esquecer que se os alunos são os principais
agentes da violência, eles são também as principais vítimas.
A experiência dos "mediadores da educação"
Pensa que a figura de mediador educativo, criada há
cerca de três anos em França, tem contribuído para melhorar
o diálogo entre os diferentes agentes da escola? Segundo um recente relatório
do ministério da educação francês eles têm
tido uma acção positiva na resolução dos conflitos...
À partida podemos pensar que esses agentes ajudam a melhorar
a comunicação entre os diversos actores, mas essa iniciativa não
é tão positiva quanto possa parecer, porque, se reflectirmos melhor,
constatamos que é necessária uma terceira pessoa para estabelecer
e facilitar o acto de comunicação. Não me parece que estejamos
em presença de um acto pedagógico. Se por um lado a comunicação
se torna mais fácil, por outro faz com que o principal problema, a dicotomia
"nós" e "eles", se mantenha e se erga uma fronteira
que remete para a etnicização das relações escolares.
Além disso, esses mediadores são habitualmente escolhidos de acordo
com a sua origem - normalmente filhos de emigrantes nascidos em França.
Recrutar jovens com base na origem só vai contribuir para alargar este
fosso. Não estou a querer dizer que estes jovens não sejam elementos
válidos, mas o coração da escola deve continuar a ser a
sala de aula. E se a escola é a fonte de tensão que origina os
acontecimentos violentos, ela é também o centro das relações.
Quando o professor explica repetidamente a matéria a um aluno que, por
diferentes motivos, continua a não compreendê-la, cria-se uma situação
de tensão entre as duas partes em que cada uma tende a culpar a outra.
O professor acha geralmente que o problema é do aluno, mas acaba sempre
por sentir-se ferido na sua auto-estima profissional. O jovem pensa que a culpa
é do professor, que não sabe explicar, mas acaba por convencer-se
de que a responsabilidade é sua. É um problema de dignidade profissional
e pessoal que atinge os dois lados, traduzindo-se numa situação
de tensão que, mais tarde, pode degenerar em violência. Acho que
devemos trabalhar a questão da tensão mais aprofundadamente. Não
apenas lutar contra os sintomas, mas sobretudo diminuir a tensão no dia-dia
da vida e na sala de aula. É uma questão de pedagogia, de saber.
Ainda recentemente, um outro inquérito realizado
junto de encarregados de educação franceses concluiu que a maioria
dos jovens se queixava aos pais de que a escola é "aborrecida".
O que pensa sobre isto?
Ao longo das pesquisas que tenho vindo a realizar nos últimos
doze anos, os jovens respondem-me que vão para a escola para passar de
ano, obter um diploma, arranjar um emprego e ganhar dinheiro para ter uma "vida
normal". E ter uma vida normal não é uma garantia quando
se cresce num bairro popular. Tem de se lutar por ela, que não é
o que acontece nos meios de classe média. Ou seja, os jovens vão
principalmente à escola para ter acesso a uma "vida normal",
não para aprender. Mas, no dia-a-dia, a escola é considerada um
aborrecimento, porque existe uma enorme desfasagem entre este objectivo e os
processos para chegar a ele. Na minha opinião, a prioridade passa por
encontrar meios para que o saber faça sentido para os jovens.
Curiosamente, e partindo dos resultados das minhas pesquisas em França
e no Brasil, na perspectiva da maioria das crianças e dos jovens um bom
aluno é aquele que chega pontualmente e levanta a mão antes de
falar, não é aquele que apreende conhecimentos. Se lhes pedirmos
um relato de uma semana na escola, qualquer que seja o grau de ensino, ele resume-se
habitualmente a uma lista de salas de aulas, de matérias, de nomes de
professores; raramente falam do conteúdo.
Por outro lado, se é verdade que o conhecimento implica uma valorização
e uma mudança no indivíduo, os jovens de meios desfavorecidos
tendem muitas vezes a considerar isso uma forma de "traição"
para com os seus - para com o pai ou a mãe que não sabem ler,
para com os amigos que já fracassaram na escola. Ao ser mais bem sucedido
do que eles estarei ou não a traí-los? Estas são questões
importantes e uma fonte de problemas no quotidiano das escolas dos bairros populares.
O discurso e a prática
A educação tende a procurar mais os resultados
do que a valorização e satisfação individual dos
alunos. A elaboração de rankings das escolas é disso um
bom exemplo. Como poderá evoluir esta tensão crescente?
Actualmente verifica-se uma ofensiva neo-liberal na escola e ela sente-se
principalmente nos países do sul, como França e Portugal. Nos
últimos dez anos, o facto mais relevante na educação é
o facto de os estabelecimentos de ensino público terem também
entrado num processo de concorrência. Além de concorrerem com as
escolas privadas, eles passaram igualmente a concorrer entre si. E essa evolução
levanta muitas questões.
As escolas participaram da definição das políticas de descentralização
e de autonomia - sei que em Portugal esse é ainda um ponto de debate
-, mas essas são ideias caras à esquerda política. Ou seja,
deparamo-nos com duas vertentes: uma vertente liberal e uma vertente de esquerda,
o que origina um debate aceso.
A descentralização educativa numa cidade como Porto Alegre, por
exemplo, demonstrou que a luta contra o insucesso escolar depende muitas vezes
da iniciativa das autarquias. Mas o facto de o sector educativo estar nas mãos
de uma autarquia nem sempre significa que esse processo é bem conduzido,
porque depende sempre, em boa parte, da sua orientação política.
Acredito que, acima de tudo, se deve continuar a lutar por mudanças no
dia-a-dia da sala de aula, ao nível das estruturas, de forma a tornar
a escola numa instituição mais democrática, que inclua
os alunos nos processos de decisão.
No Brasil, por exemplo, atingiu-se há poucos anos uma taxa de escolarização
perto dos 95%, nível que outros países em desenvolvimento, nomeadamente
em África, estão longe de atingir. Mas a generalização
do acesso ao ensino deu origem a um fenómeno inesperado, já que
uma percentagem significativa desses alunos não vai além do terceiro
grau e muitos saem da escola sem saber ler nem escrever. Ou seja, não
é suficiente proporcionar aos jovens o acesso à escola. O direito
fundamental da educação não passa apenas pelo direito de
acesso à escola, mas por aprender nela, apropriar-se dos saberes que
ela transmite.
As pesquisas que eu e os meus colegas temos desenvolvido sobre a questão
da relação dos alunos com o saber estão a revelar estas
questões. O que significa para as crianças e jovens ir à
escola, estudar e aprender, quer na escola quer fora dela? São estas
as questões básicas que interessa trabalhar. Diz-se muitas vezes
que os jovens abandonam a escola precocemente, mas eu penso que eles nunca chegam
a entrar nela, nas suas lógicas simbólicas. Deste ponto de vista,
não estamos a entrar na sociedade do saber, como muitas vezes se diz,
mas limitamo-nos à sociedade da informação, o que não
é exactamente a mesma coisa.
Pensa que os professores se estão a dar conta
do processo de mercantilização da educação?
É uma questão complicada. Para falar a verdade, quem
conhece melhor o sistema de educação e saberá como melhor
tirar partido do mercado de educação que se está a criar
é o professor. E isto não é uma conclusão empírica,
baseia-se em pesquisas qua a minha equipa tem vindo a realizar.
Por um lado, enquanto profissional, o professor defende a escola pública
e luta contra a sua mercantilização. Mas ao mesmo tempo, enquanto
encarregado de educação, pode, em princípio, tirar melhor
partido porque conhece esse mercado. O que se verifica, portanto, é uma
contradição entre esses dois estatutos. E não faz qualquer
sentido explorar o sentimento de culpa, porque existem muitos processos que
constroem o quotidiano da escola, alguns deles enraízados na escola,
outros na família, que interferem na assumpção desse dilema.
O importante é reconhecer que existe uma contradição entre
o discurso e a prática da democratização, e que se torna
necessário trabalhar mais nesse campo.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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