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Apogeu e crise da heroína

O modo como compreendemos hoje o fenómeno da toxicodependência começou a ser desenhado nas duas últimas décadas do século XIX, através de duas linhas fundamentais: a medico-sanitária e a juridico-moral. Deixemos de lado esta última e concentremo-nos por um momento na primeira.

A evidência inicial da dependência causada por uma droga no ocidente moderno ocorreu com a morfina nos anos 80 desse século. Deveu-se em grande parte à iatrogenia médica através da utilização maciça da recém-descoberta morfina. Por essa altura, surgem as primeiras observações clínicas sobre o comportamento do morfinómano, nomeadamente através do farmacologista e antropólogo Louis Lewin, cujas observações eram já de tal modo que praticamente se não distinguem das que ainda hoje os clínicos fazem para a heroinomania. Introduziu conceitos que continuam centrais no modelo medico-sanitário: tolerância, abstinência, dependência física e psicológica. Daí para cá não mais foi possível desligar, ao nível das representações colectivas, duas entidades que não têm de estar ligadas por nenhum vínculo de necessidade: droga e dependência.
Este modelo atingiu o seu auge a propósito da figura do heroinómano, cuja ascensão se deu na Europa a partir do final dos anos 70 e nos E.U.A. alguns anos antes. Sobre o seu comportamento erigiram-se explicações e teorias e sobre a necessidade da sua recondução à norma erigiu-se toda uma rede assistencial e todo um circuito penal. De tal modo a heroína e o seu adicto se fizeram centrais que praticamente apagaram outras drogas, outros estados translúcidos, outros mercados psicotrópicos (incluindo o dos psicofármacos), outros actores. Mas eis que todo este aparato do “combate ao flagelo da droga” produziu mais problemas do que aqueles com que tinha de debater-se inicialmente. O “mundo da heroína” é um mundo em crise – como que se um ciclo chegasse ao fim, tanto ao nível das práticas de consumo que o caracterizaram como das fórmulas assistenciais que sobre elas intervieram. Não desaparecerão de todo, concerteza, os dependentes deste opiáceo. O que está em desaparição, isso sim, é a capacidade de atracção que ele detinha, o seu élan que fixava prosélitos em todos os grupos sociais, havendo actualmente sinais da sua circunscrição progressiva a determinadas franjas – particularmente em áreas urbanas desqualificadas e relegadas pela cidade dominante. Aquilo que circunscreveu a heroína não tem tanto a ver com alguma vitória tecnico-científica sobre a adicção, mas com uma auto-limitação do fenómeno fruto dos cenários que ele próprio engendrou – é hoje um fenómeno que cresce para dentro, agravando as condições daqueles que se iniciaram nos consumos nas décadas anteriores. Envelhecimento e crise, eis o cenário que oferece hoje o mundo da heroína.
Os actores e as práticas das drogas duras nos territórios psicotrópicos são agora, na representação colectiva, um mundo decadente: o junkie, primeiro um “drogado”, depois um delinquente e figura da insegurança urbana, é agora também uma ruína - exprime-o bem o facto de ser a figura aglutinadora da dispersão de situações que fazem o tema da exclusão social. A sociedade cansou-se da heroína, cuja imagem está hoje reduzida a uma série de complicações e problemas. O próprio junkie é um ser repetitivo, cíclico no seu comportamento - e quando sai do pó fá-lo mais por cansaço do que por alguma “cura”. O que cura, no mundo junkie, é a desilusão e o cansaço. Quando não cura, mata....
Ora, é como se a comunidade científica também se tivesse cansado. Antes mesmo de termos entendido o fenómeno junkie em profundidade, os nossos trabalhos começaram estranhamente a assemelhar-se ao seu mundo: esteriotipados e repetitivos. Faltam hoje interrogações inovadoras e o refrão, colonizado politicamente, insiste nos chavões do combate, da perigosidade do “drogado”, das relações droga-sida e droga-exclusão social ...
Enquanto os cientistas não produzem um novo olhar, prisioneiros da anestesia junkie e cativos, por vezes, das políticas oficiais, é o próprio fenómeno da psicoatividade que se encarrega de se renovar a si próprio: eis o que nos dizem, por exemplo, o retorno da cannabis ou a cultura do ecstasy.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 115
Ano 11, Setembro 2002

Autoria:

Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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