De todas as espécies de OFNI´s (objectos-faladores-não-identificados)
se pode dizer, em tese geral, que só o são verdadeiramente enquanto
não nos damos conta do seu mecanismo anfibológico de produção
— que é (I) o de tornar indistinto o que antes era distinto no
fundo lexical de um idioma (no caso que nos interessa, o Português), ou,
no melhor dos casos, (II) o de tornar dúbio e equívoco o que antes
o era menos ou não o era de todo.
Os OFNI´s do grupo (II) são, em certo sentido, bem mais fáceis
de identificar do que os do grupo (I). Para isso contribui o facto de se apresentarem,
quase sempre, como “estrangeirismos”; palavras ou frases importadas
com o objectivo de suprir alegadas lacunas do vocabulário autóctone.
Isso confere-lhes uma certa aparência de legitimidade, como é o
caso dos OFNI´s que aqui serão examinados: “fétiche”
(Ing.fetish, Fr.fétiche) e “fétichismo” (Ing. fetishism,
Fr. fétichisme).
Estrangeirismos ?
Dito de outro modo: como já não serão
muitos os idiomas isentos de estrangeirismos e como, além disso, em idiomas
muito traquejados e viajados, como é o caso do idioma Português,
os estrangeirismos são muitos e muitos deles têm séculos
de existência, tudo se afiguraria normal nos exemplos alegados. Seriam
estrangeirismos, ponto final.
Mas eu insisto, já se verá porquê, em considerá-los
OFNI´s, embora de uma estirpe particular e muito prolífica. E quando
digo OFNI´s, refiro-me, nesses exemplos, às formas escritas entre
aspas, que são as formas que correspondem ao modo como os seus utilizadores
costumam ou preferem pronunciá-las. As formas entre parênteses
são outra coisa. Correspondem à ortografia das palavras que servem
de avalistas (tardios, involuntários e contrafeitos, como veremos) a
este tipo de OFNI´s, no idioma que os seus utilizadores acreditam piamente
ser o que lhes serviu de modelo originário. Se se tratar do Inglês,
essa crença é, aliás, quanto basta para esses e muitos
outros OFNI´s — e.g. "share", "share holder",
"prime rate", "prime time", "marketing", "lay
off", "bench marking", "voucher" — serem efusivamente
acolhidos, como objectos de culto, no discurso dos pânditas portugueses
daquela religião internacional que adora o deus Cifrão.
Feitiço
Examinemos, então, com base em “fétiche”,
o mecanismo anfibológico deste tipo de OFNI´s. A primeira observação
a fazer é que a palavra originária é portuguesa, “feitiço”
(de “feito” ?), com provável relação etimológica
com o latim “factitius” (artificioso, feito com habilidoso propósito).
A acreditar no Oxford English Dictionary (OED), “feitiço”
terá sido criada no século XV pelos primeiros navegadores portugueses
que aportaram às costas do golfo da Guiné e a outras regiões
da costa ocidental de África. Esses marinheiros terão reparado
na veneração supersticiosa com que os povos nativos dessas paragens
tratavam certos objectos que fabricavam e usavam no seu próprio corpo,
a que deram então o nome de “feitiços”. De “feitiço”
derivou, com o correr do tempo, uma série de palavras cognatas:“feiticeiro”,
“feitiçaria”, “feiticismo”, etc.
O OED adianta que a palavra “feitiço” transitou para o Inglês,
primeiro na forma de “fatissos” (atestada desde 1613) e mais tarde,
na literatura antropológica, sob a forma de “fetish” (atestada
desde 1760), onde passou a significar aqueles objectos de culto a que os “selvagens”
atribuem poderes mágicos de autoprotecção ou de “animação
por um espírito”. Em 1869, McLennan, que criou o totemismo como
tema teórico, inventou também a célebre (e para mim estrambótica)
equação: o totemismo é o “fétichismo”
mais a exogamia e a descendência matrilinear. Da antropologia, o “feitiço”
(na forma “fetish” do Inglês e “fétiche”
do Francês) transitou para a psicanálise, via Freud, onde passou
a significar um objecto inanimado que exerce (por projecção fantasiosa
do “líbido”) uma atracção sexual sobre certos
indivíduos, ditos, por isso, “fétichistas”.
Legados
Mas, por essa altura (primeiras décadas do século
passado), já poucos estariam lembrados de como tudo havia começado:
pela observação de alguns navegadores portugueses dos costumes
e crenças de povos do golfo da Guiné. Daí o espectáculo
meio cómico meio confrangedor que, de vez em quando, nos é oferecido:
portugueses que dissertam com imperturbável convicção sobre
“fétiches” e “fétichismo” sem aparentemente
suspeitarem um instante sequer que as palavras que tão doutamente deturpam
foram criadas por marinheiros seus antepassados, gente quase toda ela analfabeta
mas bem mais capaz de se abeirar e beber à saciedade das fontes da sua
língua natal.
Errata
Por lapso, a introdução do artigo anterior não
chegou a ser publicada. Nela se lia o seguinte: “Uma gralha desfigurou
a segunda palavra do título do artigo anterior (“Liberal, Neoliberal,
Antiliberal”) que apareceu assim: “Neiliberal”. Desta vez,
porém, o título (“Lidres para uma certa República”)
não contem gralhas. É tal qual está escrito”. Pelo
sucedido, apresentamos as nossas desculpas aos leitores.
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