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Estratégia nominalista no ensino superior

A mudança no ensino superior é imprescindível mas cabe à classe docente participar nela, debatendo-a de modo a que não resulte apenas numa "revolução" nominalista.

A crer nos jornais, vamos ter novas leis no ensino superior, relativas ao seu desenvolvimento, autonomia, financiamento e avaliação, à implementação do processo de Bolonha e ao novo estatuto da carreira docente. Uma revolução, proclama alguma comunicação social, referindo-se apenas à primeira das leis. Entretanto, actores políticos e fazedores de opinião relançam algumas questões globais que, prévias às reformas, correm, mais uma vez, o risco de não serem aprofundadas: a da compatibilidade das clássicas funções estruturantes de produção de saber e de formação de elites com a massificação do ensino superior; a do carácter profissionalizante dos cursos; a da identidade dos cursos politécnicos e dos cursos universitários. Por vezes, apontam-se já caminhos: a universidade para as elites e o politécnico para as massas; só cursos profissionais em ambos os casos; esbatimento das diferenças entre universidade e politécnico; e, talvez se possa concluir, só universidades politécnicas.
Temos no ensino superior massa crítica para aprofundar estas e outras questões essenciais. Mas, reconheçamos, não o temos feito muito. Não podemos deixar de iluminar, com os instrumentos que são os nossos, questões políticas que acabam por enquadrar a nossa actividade como professores do ensino superior. Também não podemos delegar essa tarefa sempre na mesma meia dúzia de colegas.
Mas há um obstáculo à nossa participação construtiva nestes debates. Embora a missão última do ensino superior seja construir cultura, tendemos a opor uma compreensível resistência às mudanças culturais relativas às nossas próprias práticas. Não sendo actores de tais mudanças, opomo-nos, e bem, a ser meramente sujeitos a elas, reforçando deste modo a convicção social da impossível auto-reforma do ensino superior. Todo o segredo está nas condições que nos fazem passar da primeira atitude de oposição (de conservação) para um envolvimento activo na construção de novas práticas. Talvez seja relevante haver uma pressão externa suficientemente desafiante, mas não muito ameaçadora, deixando claro, por um lado, que a mudança é imprescindível e, por outro, que nos cabe o contributo principal na sua autoria.
Uma das formas a que frequentemente recorremos para que as reformas não impliquem mudanças nas nossas práticas é a de fazer com que se limitem aos nomes ou designação das coisas e não à substância das mesmas. Vejamos, a título de ilustração, como esta estratégia nominalista se pode aplicar no caso do processo de Bolonha.
Uma das mudanças é a organização dos cursos em ECTS. Recorrer à estratégia nominalista será considerar que um ano lectivo abrange sessenta unidades de crédito, e já não cerca de trinta, e fazer as multiplicações necessárias para que a mesma realidade passe a ser traduzida em créditos europeus. Isto, em vez de ter em conta que os mesmos se referem ao tempo de aprendizagem do estudante e não ao tempo de ensino do professor, o que não deixa de ter implicações na organização de ambos. É ainda considerar que para a comparabilidade dos créditos basta harmonizar as designações das disciplinas e dos conteúdos cobertos nas aulas em vez de identificar e harmonizar os resultados (conhecimentos, metodologias, capacidades, atitudes, competências) a atingir no final do trabalho de aprendizagem do estudante.
Uma outra mudança pressuposta pelo processo de Bolonha refere-se à duração e à estrutura dos graus académicos. Recorrer à estratégia nominalista será, por exemplo, passar, no ensino politécnico, a designar o bacharelato por licenciatura e a licenciatura por mestrado e, no ensino universitário, manter as designações, conservando, num e noutro caso, a tradição existente no respectivo subsistema. Isto, em vez de, neste novo contexto, nos interrogarmos sobre as características de um curso de licenciatura e de um curso de mestrado e construirmos novos cursos em consequência.
Uma terceira mudança no quadro de Bolonha tem a ver com o processo de dar garantias à sociedade, a nível nacional e europeu, sobre a qualidade do ensino superior. Como referi no artigo publicado neste espaço em Março, isto exige um profundo redimensionamento de todo o nosso sistema de garantia de qualidade do ensino superior, actualmente confinado ao respectivo sistema nacional de avaliação. Ainda não acedi à nova proposta de lei sobre o desenvolvimento do ensino superior; segundo os jornais, passaria a haver um sistema de acreditação de todo o ensino superior, o que, em princípio, não me parece mal. Recorrer à estratégia nominalista, para que tudo continue na mesma, será passar a chamar acreditação à actual avaliação, entregar a sua responsabilidade ao mesmo tipo de entidades, utilizar idênticos critérios e metodologias e, quem sabe, designar para coordenar o processo as pessoas que ainda ontem clamavam pelo fim da acreditação, porque atenta contra a autonomia universitária e impede a necessária inovação permanente. Neste último, a estratégia nominalista - mudar os "nomes" dos coordenadores - é uma das condições para haver mudança e para não termos de assistir a espectáculos de indignada negação do referido clamor e de adesão entusiasta às virtualidades do novo sistema.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 114
Ano 11, Julho 2002

Autoria:

Bártolo Paiva Campos
Univ. do Porto; Presidente do Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores (INAFOP)
Bártolo Paiva Campos
Univ. do Porto; Presidente do Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores (INAFOP)

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