O Imperador deu o sinal. A porta de grades de ferro que fechava a saída do
túnel foi erguida e do escuro veio um crescendo de rugidos ameaçadores. No
centro da arena, um grupo de cristãos apertava-se, uns junto aos outros. Os
espectadores estavam todos de pé. Berros excitados, gritos de medo e os rugidos
aproximavam-se como uma avalanche. Do túnel emergiu a primeira leoa, movendo-se
com agilidade e em silêncio. O espectáculo tinha começado.
Munido de uma vara comprida, o guarda dos leões, Gaius, certificava-se se todos
os leões, estavam na arena, para tomar parte no terrível divertimento. Estava
quase a dar um suspiro de alívio quando reparou que um leão se tinha detido
mesmo junto à saída e mastigava calmamente uma cenoura. Gaius comegou a
praguejar. Um dos seus serviços era assegurar que nenhum dos animais ficasse
ocioso. Aproximou-se do leão tanto quanto os regulamentos de saúde e segurança
permitiam, e espicaçou o dorso do animal com o varapau. Para sua surpresa, o
leão apenas voltou a cabega e agitou a cauda. Gaius picou-o outra vez, com mais
força agora.
"Deixa-me em paz", disse o leão.
Gaius coçou a cabeça. O leão tinha sido absolutamente claro nas suas intenções:
não desejava ir para a arena. Gaius era bom homem, mas temia que, se o
superintendente o apanhasse em falta nos seus deveres, depressa se encontrasse
entre as vítimas, na arena.
Por outro lado, não estava disposto a entrar em discussões com o leão Tentou a
persuasão.
"Talvez queiras sair por atenção para comigo?"
"Não sou nenhum idiota", replicou o leão continuando a comer a cenoura.
Gaius baixou a voz.
"Não estou a dizer que tens de saltar sobre um daqueles desgragados e fazê-lo
em pedaços. Só to peço que dês uma volta e rujas. Isso fornecer-nos-á um
alibi."
O leão abanou a cauda.
"Homem, já to disse que não sou nenhum parvo. Se me vissem aí haviam de
lembrar-se de mim. Depois, ninguém ia acreditar que eu não comi nenhum."
O guarda suspirou e perguntou, em tom de queixa:
"E o que é que tens contra isso?"
O leão olhou-o atentamente.
"Tu próprio utilizaste a palavra alibi. Ainda não te ocorreu qual a razão por
que todos aqueles patrícios não saltam para a arena e eles próprios dão cabo
dos cristãos em vez de nos encarregarem a nós, leões?"
"Enfim, sei lá... Na sua maioria, são veIhos. Falta de fôlego, percebes?
Asma..."
"Velhos", rosnou o leão troçando. "Sabes muito de politica. O que eles querem
ter é um alibi."
"Porquê?"
"Por causa da nova verdade que tem vindo a ganhar terreno. Temos serrrpre que
ir observando o que é novo e se desenvolve. Nunca te passou pela cabeça que os
cristãos podiam vir para o poder?"
"Eles - para o poder?"
"Pois. É preciso saber ler nas entrelinhas. Parece-me provável que Constantino,
o Grande, entre em negociações com eles, mais tarde ou mais cedo. E depois?
Investigações e reabilitações. E então, aqueles ali em cima no anfiteatro
poderiam dizer: - Não fomos nós, foram os leões."
"Realmente, nunca tinha visto as coisas por esse prisma."
"É como vês. Mas não te preocupes com eles. O que eu quero é salvar a pele.
Quando chegar a altura, haverá testemunhas a dizer que a única coisa que eu fiz
foi comer uma cenoura. Por sinal, é uma boa porcaria, esta cenoura."
"Mas todos os teus camaradas", disse Gaius não sem malícia, "andam a tragar
cristãos com grande apetite."
"Animais estúpidos. Oportunistas de vista curta. Falta do mínimo sentido
táctico. Da mais negra África."
"Quer dizer", interrompeu Gaius.
"Sim?"
"Se esses cristãos, entendes?..."
"Os cristãos, o que? "
"Se eles vierem para o poder..."
"E então?"
"Então, testemunhas em como eu não te forcei a fazer nada?"
"Salus Respublicae summa lex tibi esto" (1), disse o leão sentenciosamente,
voltando para a cenoura.
(1) seja a salvação da República a lei suprema.
(N. do T.).
Mrozeck
O Elefante, Editorial Estampa, Livro B-2
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