Uma das maneiras através das quais a política muda é pelo vocabulário que
nós usamos para descrever ou representar aquilo que acontece, e pelas respectivas
consequências na forma pela qual compreendemos e interpretamos essas mesmas
coisas. Interessantemente, os usos possíveis do título desta rubrica, "Reconfigurações",
é um excelente exemplo do que acabo de afirmar.
"Reconfiguração" é um termo que é frequentemente, e de uma forma muito positiva,
empregue pelos proponentes da Terceira Via, sobretudo no Reino Unido, para descrever
a natureza dos processos através dos quais eles estão a mudar a política; a
não ser que se seja muito cuidadoso facilmente se pode resvalar e aceitar a
perspectiva segundo a qual está a acontecer algo chamado reconfiguração, e envolvermo-nos
assim em debates cujos parâmetros são estabelecidos pela ideia de 'reconfiguração',
tal como até que ponto e em que áreas é que aconteceu, em vez de ter como escopo
central a análise da natureza das mudanças. Quer dizer, o que é necessário (fundamental)
é um confronto com o conceito tal como ele foi usado pela política da Terceira
Via. E, mais geralmente, podemos tomar este caso como um exemplo da necessidade
mais de problematizar do que assumir como algo dado o vocabulário através do
qual discutimos política.
Há dois importantes elementos nas maneiras pelas quais o debate político contemporâneo
é por vezes estruturado que são especialmente importantes, os termos através
dos quais a política é enquadrada e as maneiras como a sociedade é apresentada
a si própria; estes dois elementos são os referidos no título deste artigo como
'fumos' e 'espelhos' respectivamente(1).
Talvez os mais obscuros dos fumos sejam aqueles que rodeiam o próprio termo
'A Terceira Via'. Tem havido um interminável e inconclusivo debate acerca do
que tal significa precisamente, do que é que implica e induz. Estes debates,
contudo, convergem no facto de que a Terceira Via envolve um afastamento da
'velha política', e particularmente das suas conotações derivadas das oposições
binárias, como capital-trabalho e estado-mercado.
Há pelo menos três maneiras através das quais a 'política' está a ser reconfigurada
através desta terminologia da Terceira Via. Uma é através de uma fusão
de interesses anteriormente opostos. Assim, estado e mercado são agora vistos
através de uma relação de cooperação, ou, por vezes, como uma parceria
(como as 'parcerias público-privado' que actualmente dominam a provisão de bens
sociais no Reino Unido, e acerca das quais Susan Robertson escreverá no próximo
artigo desta rúbrica), ao mesmo tempo que aquilo que são essencialmente formas
actualizadas de corporativismo (frequentemente envolvendo o vocabulário de 'parceiros
sociais') são invocadas no sentido de dissolverem os conflitos entre os dois
lados da indústria e do comércio. E quando estas tentativas são focalizadas,
são tipicamente re-interpretadas e representadas como inclusão/exclusão social,
o que representa um passo atrás nessa senda da fusão, mais do que um reconhecimento
da intransigência da oposição mútua.
Este tipo de manobra também caracteriza a segunda maneira através da qual a
Terceira Via reconfigura as concepções de política. Neste caso, representa a
transcendência das oposições binárias, com a intimação de que o projecto
da Terceira Via une a sociedade, moral ou nacionalmente, por exemplo,
e ultrapassa conflitos entre interesses inerentemente opostos.
O última, e eventualmente mais comum, dos passes de fumo da Terceira Via é o
de representar-se a si mesma como uma alternativa quer ao estado, quer
ao mercado. É possível com facilidade fazer uma longa lista de candidatos a
esta posição intermédia - a comunidade, a sociedade civil, as redes, o capital
social, a solidariedade, e por aí adiante. Há duas questões com estes termos.
A primeira é que ambos cobrem uma ampla gama de casos empíricos, que estão longe
de ser compatíveis, ou sequer comensuráveis entre si. A outra é mais importante
para o nosso fim. É que apesar desta gama de aplicações, estes termos possuem
um certo número de características em comum que os tornam extremamente importantes
para os fumos lexicais da Terceira Via. Ao nível psicológico, conotam afecto
e não dureza, a união e não divisão, veiculam conotações morais de inclusão
e ausência de conflito, nos termos da 'velha' política eles são neutros, e contêm
uma significativa flexibilidade de significado. Estas qualidades tornam-nos
ao mesmo tempo socialmente vazios e despolitizados - e dessa forma meios ideais
para representar um projecto político que procura minimizar o papel da política.
Quando olhamos para os 'espelhos' encontramos um quadro semelhante, de facto
complementar. Por espelhos quero eu referir muito directamente as formas pelas
quais a sociedade é apresentada aos seus membros, através da utilização de indicadores
e referentes sociais. Estas reflectem perfeitamente os tipos de objectivos sugeridos
pela terminologia acima sugerida. Por um lado, estes medem, indicam e referenciam
níveis de Inclusão Social e não níveis de pobreza, por exemplo, fornecendo dessa
forma substância, e reforçando o estatuto, da Inclusão Social como uma forma
de dar conta da realidade social e política ao mesmo tempo que mina formas alternativas
de o fazer. Aqui os fumos e os espelhos combinam-se claramente para produzir
o efeito trompe l'oeil. E, por outro lado, as abordagens da Terceira
Via tendem a empregar como indicadores categorias que contêm todas as características
a que já nos referimos na lista das alternativas às distinções do estado-mercado
- exclusivamente conotações positivas, de neutralidade, e talvez sobretudo,
de flexibilidade. Os descritores de indicadores formados à volta destes elementos
surgem como uma espécie de guisado político, em si mesmo sem sabor/significado,
mas idealmente adequados para absorver todos os sabores pelos quais possa ser
eventualmente rodeado.
Um exemplo emblemático deste tipo de indicador é a 'qualidade'. A 'qualidade'
é algo a que ninguém se opõe, que toda a gente procura, que fica fora e acima
das políticas partidárias - e que pouco significado intrínseco possui. Um exemplo
muito claro daquilo que pretendo dizer pode ser encontrado na publicação da
UE, European Report on the Quality of School Education: Sixteen Quality Indicators,
na qual 'qualidade' se transforma no meio principal através do qual a UE pode
intervir nos sistemas educativos nacionais. Neste documento, a neutralidade
e a flexibilidade da 'qualidade' são usadas não só para ampliar a agenda de
convergência através do alargamento da lista daquilo que pode ser compreendido
na qualidade, mas também para permitir uma mudança no papel dos indicadores,
que deixam de ser meros registos/reflexos daquilo que está a acontecer nos sistemas
educativos nacionais para se tornarem um meio para prescrever e o monitorizar
aquelas políticas e actividades.
Nada do que precede tem como objectivo sugerir que não tem havido mudanças extremamente
importantes na relação entre o estado e o mercado, entre o trabalho e o capital,
por exemplo, ou no lugar e no âmbito da política ao níveis nacional e supranacional,
ou que aquilo que se deve fazer é regressar ao nosso antigo vocabulário. É claro
que as velhas categorias já não funcionam como antes, e que os campos da política
e da educação, a sua interacção mútua e as suas relações com o capital se não
se transformou a todos os níveis, pelo menos modificou-se significativamente
pelo conjunto das forças e instituições referidas sob o nome de globalização.
Trata-se, antes, de sugerir que não estamos bem servidos com os vocabulários
de fumos e de espelhos, e os conceitos de borracha e desenxabidos, que em muitos
casos foram introduzidos para substituir aqueles outros, e que essas alternativas
ameaçam por si mesmas contribuir para a despolitização da política.
1 A frase 'fumos e espelhos', inspirada nas artes mágicas que se baseiam no
'trompe l'oeil' para persuadir a audiência, é frequentemente usada para referir
a apresentação de políticas e partidos políticos.
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