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Amélia Lopes em entrevista a "a Página"

Amélia Lopes é licenciada em Psicologia e Doutorada em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP). A construção de identidades profissionais, nomeadamente dos professores, tem constituído o seu tema central de pesquisa, sobre o qual tem publicado dezenas de artigos e desenvolvido diversos projectos, entre eles o projecto CIPROF, financiado pelo Instituto de Inovação Educacional. É coordenadora do Mestrado - especialidade em Docência, Identidades e Formação, que será iniciado no próximo ano lectivo e membro da Comissão Coordenadora do Conselho Científico da FPCEUP. Sobre a temática das identidades, é autora de "Professoras e Identidades - um Estudo sobre a Identidade Social de Professoras Portuguesas" e "Mal Estar na Docência - Visões, Razões e Soluções", ambos das Edições Asa, bem como de "Libertar o desejo, resgatar a inovação - a Construção de Identidades Profissionais Docentes", recentemente lançado no mercado pelo IIE, sobre o qual incidiu parte desta entrevista.


Que factores estão na origem da construção das identidades profissionais docentes? Haverá com certeza factores de ordem pessoal e de ordem externa a determiná-la...

Sim, isso é consensual. Agora, se quisermos saber quais os factores que estão hoje subjacentes à construção das identidades profissionais teremos talvez de reflectir primeiro sobre uma outra questão: a crise das identidades docentes.

Que, de acordo com a tese que defende em "Libertar o desejo, resgatar a inovação", são inseparáveis das crises das relações sociais das sociedades modernas...

Sim, é um avanço conceptual relativamente a outros pontos de vista possíveis, que relaciona a crise de identidade dos professores - mas também de outras profissões e de outras crises das sociedades modernas - com a própria crise da modernidade. Um dos problemas é pensarmos que a sociedade em que vivemos existiu sempre, o que faz com que não tenhamos uma perspectiva relativa do actual estado da sociedade por relação com o seu próprio desenvolvimento, ou seja, que a crise e as soluções possíveis para ela fazem parte do próprio processo social e do seu desenvolvimento.
Portanto, para responder à pergunta inicial, e decorrente dessa relação entre a crise da modernidade e a crise de identidade profissional - que é mediada pela crise da escola -, diria que ela está intrinsecamente ligada ao facto de a instituição escolar ter sido fundamental para a construção da sociedade moderna tal como ela existiu até meados do século XX. A sociedade moderna baseia-se na escola como elemento regulador central da nova ordem social, até porque o saber - ou, melhor, o diploma que a escola confere - é o novo critério de hierarquização social e distinção social.
A emergência da escola e da instrução está ligada a duas intenções, que poderemos sintetizar por regulação e emancipação. O modo como ela depois se realiza na instituição escolar, no sistema educativo, nos processos de socialização escolar, coloca a ênfase na regulação e não na emancipação. E isto vai ter impacto nos factores que poderão estar hoje subjacentes à construção das identidades profissionais.

Refere que a crise de identidade docente, traduzida nomeadamente no chamado mal-estar docente, decorre sobretudo de uma vontade de mudança que não se torna efectiva, ou seja, de que a adesão à inovação é, para a maioria dos professores, uma importante fonte de reconhecimento não concretizado. De que forma se traduz esta vontade de inovação?

Tem a sua origem no apelo social à mudança, que se faz sentir no mundo ocidental sobretudo a partir da segunda guerra mundial e em Portugal a partir do 25 de Abril. Mas se, ao fim de vinte e oito anos, vamos conseguindo identificar para onde se direcciona essa mudança - apesar de termos diferentes propostas e projectos em debate - há uma primeira fase, marcada sobretudo pela oposição ao tradicional, à escola antiga que não queríamos. E isto é, em si mesmo, o problema da mudança (que se manifesta tanto mais quanto menos elaborada é a problemática da transformação - do "porquê", do "para onde" e do "como"): subsistir ainda muito a ideia de mudança apenas como ideia oposta à tradição.

Apesar de o estudo que realizou - que serviu de base ao livro "Libertar o desejo, resgatar a inovação" - se ter centrado sobre os professores do 1º ciclo, será possível extrapolar algumas das conclusões para os restantes níveis de ensino?

Num ponto nuclear, sim. A questão da mudança interroga as identidades passadas, a todos sem excepção. Agora, dada a história dos professores e das professoras do 1º ciclo em Portugal, essa questão torna-se para elas bastante mais "sofredora".

O tal dilema entre o amor e o controlo, a que se refere a dada altura do livro...

Sem dúvida, e que é intensificado pelo facto de a maioria dos docentes serem professoras. O que é certo é que a maioria das professoras portuguesas, até ao 25 de Abril, determinadas pelo modo como o sistema de ensino se organizou, sobretudo durante o Estado Novo, que conseguiu configurar na perfeição a educação para a conformidade, vai ter de actuar como agente de "controlo". E no entanto, enquanto mulheres - o que mais uma vez se relaciona com a questão da modernidade -, o lugar delas é o do privado, da sensibilidade, do amor e, poderíamos até dizer, da subjectividade. E isto colocou-as sempre numa posição estranha do ponto de vista do seu sofrimento psicossocial, se quisermos, mas também da sua posição social, da visão que os outros têm acerca delas e do seu papel na sociedade. Aliás, é um nível de ensino em relação ao qual há, por um lado, discursos inflamados sobre a sua beleza e importância, mas que por outro lado é muito depreciado.

Que diversidades existem no seio dessa identidade profissional docente, tendo em conta aspectos como as origens sociais, as ideologias ou as crenças religiosas, e de que forma afectam essa construção?

Em princípio todo o professor tem vontade de mudar. Mas esse desejo é mais ou menos escondido na medida em que a mudança "obriga" a mostrar resultados; e dado que esses resultados são por vezes um pouco difíceis de concretizar, a posição mais aceitável, para os próprios, do ponto de vista psicossocial, é a de não assumir essa vontade e criticar o que se faz no domínio da inovação e manter-se no plano tradicionalista.
À medida que a mudança se afirma como alternativa à tradição, o que acontece, do ponto de vista da vivência quotidiana das escolas, é que as diferenças se polarizam, o que é aliás típico das relações sociais modernas. Uma das contribuições da reflexão sobre a diversidade actual na sociedade e, portanto, a sua consideração no plano escolar e no plano das identidades, quer das crianças e dos jovens, quer dos professores que com eles convivem, é exactamente diversificar as possibilidades da inovação, obviando às competições que os dualismos provocam.
É isto no fundo que se identifica no grupo de professores que foi objecto de estudo: todo o grupo quer mudar e estão todos de acordo quanto a isso, mas constata-se que a mudança é diferente, e é importante que seja diferente. A identidade pretendida, reivindicada, como a ela se refere Claude Dubar, é diferente e está relacionada com aquilo que somos actualmente.
Nessa medida, temos professores que são capazes de querer sentir-se em progressão, em crescimento, mas de acordo com o seu estado actual, com o seu ponto de partida e com a sua visão sobre a identidade e sobre a profissão. Ao passo que para uns é importante o investimento institucional, e é por aí que a inovação e o sentimento de desenvolvimento profissional se processa, para outros isso faz-se através da mudança da relação com os alunos; e, dentro da relação com o plano institucional, há quem ponha a ênfase na relação entre colegas, cuidam da comunicação, outros cuidam da dimensão administrativa. Ora as respostas de ajuda, no caso da formação, devem também elas ser diferentes para permitir esse desenvolvimento.

Haverá alguma espécie de identidade comum que se sobreponha a essas dimensões?

Hoje em dia é muito difícil funcionarmos com respostas prontas a usar, o que não quer dizer que não tenhamos respostas, ou seja, soluções. Com efeito, há um sentido para todas as novas identidades sociais - e portanto para as identidades profissionais docentes, que são identidades sociais particulares - que se identifica por análise, dado que aquilo que podemos atingir no futuro é fruto da nossa criatividade e inventividade, mas também do que já fomos e do que somos agora.
E sendo assim, as respostas para o futuro não são ilimitadas. Elas enquadram-se no conjunto de possibilidades que nos obrigam a reflectir sobre o que já fomos, o que somos agora e o que queremos ser no futuro e o que fazer para chegar lá. E nesse sentido é possível identificar um conjunto de factores que devem inspirar a construção de novas identidades profissionais docentes, não para fazermos exactamente isso mas para usarmos isso como perspectiva que inspira o nosso caminho que é próprio e é adequado às nossas situações.

Há alguma forma de identidade comum docente que atravesse os diferentes níveis de ensino?

Embora também pudéssemos encontrar algumas relações, seria uma tarefa difícil de conceptualizar aqui e agora, pois iria implicar bastante mais tempo. Para que a análise fosse compreensível, antes de irmos ao comum, deveríamos fazer uma análise de per si. Agora, se falarmos apenas do ensino básico, a questão é diferente, porque se até aos anos 90 o ensino básico em Portugal correspondeu a quatro anos de escolaridade, actualmente, ele percorre os 1º, 2º e 3º ciclos. Ora, a questão do controlo coloca-se sobretudo para o ensino básico - também se coloca para os outros níveis de ensino, mas de uma forma substancialmente diferente. No ensino básico a questão do controlo diz respeito a todos - como digo no livro, diz respeito "ao povo e à parte de povo de cada um" - mesmo que depois prossigamos caminhos diferentes.
E é nessa dimensão que poderemos extrapolar algo de comum em relação a esses três níveis de ensino, comunalidade que podemos especificar em quatro deslocamentos de ênfase: da ênfase na regulação à ênfase na emancipação, da ênfase no controlo (sobretudo pela moralização do conhecimento) à ênfase na intersubjectividade, da ênfase no Estado à ênfase na comunidade e da ênfase na conformidade à ênfase na criatividade (gostaria que esta criatividade não fosse entendida como uma dimensão individual, pois a criatividade é social, mesmo quando tem uma expressão individual; gostaria também que ficasse claro que a mudança do pólo enfatizado não anula a interferência necessária do outro).


Então, afinal quem são os professores hoje?

Em primeiro lugar, a própria transformação é a passagem da homonegeidade à heterogeneidade, que deve ser entendida como um factor extraordinariamente positivo. Portanto, não existe "o" professor, há vários modos de ser professor, e a vantagem é exactamente essa. E há vários modos de ser bom professor, que acaba, na escola, por se traduzir numa boa articulação entre a realização pessoal e a responsabilidade colectiva.
Mas para além desta dimensão há de facto mais qualquer coisa, a identidade possui um núcleo que nos une a todos (os professores) e ao qual nos mantemos fiéis, apesar da mudança da sua significação ao longo do processo sócio/histórico. O conteúdo desse núcleo, que simultaneamente permaneceu e mudou, pode ser explicado a partir do dilema do amor e do controlo, e por outro lado, do dilema do rigor e da pertinência. São estes dilemas que hoje ocupam as dimensões do processo de profissionalização da actividade docente propostas por António Nóvoa: respectivamente, a dimensão das normas e valores e a dimensão do conhecimento e das técnicas. Estes dilemas, no passado, foram resolvidos a favor do controlo (externo), no domínio da relação, e a favor do rigor, independentemente da pertinência do seu significado, no domínio do conhecimento.
A construção de identidades profissionais passa pela comunicação entre as pessoas. São elas, em relação e em comunicação, que constroem novas identidades colectivas. Entretanto, aquelas duas dimensões mantêm-se, mas com novos significados. Por exemplo, do ponto de vista dos valores e das normas, o que nos inspira? A lógica do amor (baseada no reconhecimento mútuo dos diferentes) ou a lógica do controlo? E isto faz toda a diferença, porque o dilema baseia-se exactamente no facto de os professores quererem simultaneamente amar e controlar. Então, é preferível a regulação que o amor permite.
Do ponto de vista do rigor e da pertinência, centrado na dimensão do conhecimento e das técnicas, a resolução do dilema deverá passar por optar mais pela pertinência do que pelo rigor, ajudando a construir os conhecimentos que são pertinentes para as populações com que trabalhamos, qualquer que seja o domínio, sem medo do vazio. Porque é isso que muitas vezes está subjacente: ou é a tradição, ou o nada, o vazio. E esta questão não se resume assim. O processo social é um processo humano, que se realiza muitas vezes independentemente das leis ou das prescrições objectivas. A construção de novas identidades docentes está a ser feita, agora, pelos professores, nos lugares, e pela sociedade em geral.
Portanto persiste um sentido comum aos professores hoje, e esse sentido está presente no próprio processo social, enquanto sentido da transformação. Há qualquer coisa ligada a estas duas dimensões e a estes dois dilemas, a estas duas opções possíveis, da pertinência e do amor, que passa por aquilo que tem sido sempre a característica essencial da docência, qualquer que seja o nível de ensino, que é a preocupação em acompanhar os nossos parceiros de interacção, dar-lhes e permitir-lhes ter do mundo uma visão segura e coerente, que não é encerrada e imutável.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 112
Ano 11, Maio 2002

Autoria:

Amélia Lopes
Fac. Psicologia, Univ. do Porto
Amélia Lopes
Fac. Psicologia, Univ. do Porto

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