"Alva" é uma serrana do Peru, de olhos verdes, nascida nos Andes Centrais, que
há anos vivia no Hotel Kabul a estudar a cultura dos Kuchanos, povo ariano
que viveu e desapareceu no Afeganistão. A história dos encontros, por Amor, entre
ela e Pedro, que dão corpo ao romance homónimo de Miguel Urbano, é pretexto para
a descoberta de um Afeganistão como sítio que acolheu, ao longo de muitos séculos,
povos e civilizações determinantes.
Numa das muitas cartas de amor do romance, à página 112, Pedro,
o amante da história, refere uma visita a Kandahar, em tempo de bombardeamentos
dos bárbaros do Norte, e recorda a cidade, com 25 séculos de história, aquela
onde há anos encontraram a pedra que o rei Achoka mandou gravar em Aramaico
e Grego com o édito que bania a guerra do seu Império por a considerar
incompatível com a condição humana.
Não será um acto de barbárie bombardear os seculares tesouros
arqueológicos do Afeganistão? Depois dos mudjahedines, que fecharam campos
arqueológicos e bombarderam escavações, depois da destruição dos budas gigantes
pelos mesmos fundamentalistas que Washington fortaleceu antes de os combater,
surgem agora os ataques norte-americanos. Sem ignorar, perdoar ou esquecer a
barbárie de 11 de Setembro, só se compreende a resposta americana pela imaturidade
de uma nação com pouco mais de 200 anos cujos interesses se confundem com o
de uma minoria comprometida com o neo-liberalismo desenfreado dos nossos dias.
"Alva", é também ( e não é pouco) o registo, epistolar, de
da descoberta afectiva, incluindo física, entre Alva, de 62 anos, e Pedro de
54. Um jovem Pedro que em noites de insónia, imagina Alva, caminhando nua, ao
lado dele, entre as ruínas das muralhas de Bala Hissar, o antigo palácio dos
emires destruído pela barbárie imperial britânica, ou até a passear, sem roupa
pelo Palácio dos Doges, em Veneza.
Ambos, Pedro e Alva, elegem a palavra escrita. Há tempos,
numa conversa com Miguel Urbano, o jornalista e escritor dizia que para dar
este salto, do jornalismo para a escrita literária, é preciso amar a palavra.
"De entre todas as cartas que até hoje me escreveram não hesitaria em eleger
a tua como a mais bela" escreve Pedro a Alva (página 81). "Nunca recebi
em toda a vida uma carta como a que me enviaste", retribui Alva (página
94) .
Mas ao contrário de Alva, que receia que a correspondência
com Pedro seja aberta e lida, num temor que a leva a anteceder o que é íntimo
de alguns parágrafos relacionados com o trabalho, suposta leitura para afastar
um eventual olhar indiscreto, o leitor é seduzido pelas histórias que se entrecruzam
e que descrevem o encontro de dois corpos que se gostam ao som da 1812 de
Tchaikovsky ou lembram que Ghazni, cidade semidestruida pelos mudjahedines
foi, há mil anos, a capital de um Sultanato turco que durante quase dois séculos
emergiu como o maior centro cultural do Islão asiático, superando Badgade e
Damasco.
O amor entre Pedro e Alva é como o amor entre Jordan e Maria,
que Hemingway descreve, um rio a desaguar num lago. Não um rio qualquer, o Oxus
do Pamir, nem um qualquer lago, o Issik Kul, que Pedro julga o mais
belo do mundo e que se encontram por artes mágicas, como que bebidas num realismo
fantástico que marca uma escrita da América Latina a que Miguel Urbano Rodrigues
não é imune.
Mas os sentimentos de Alva, revolucionária atípica, que sempre
traz, na bolsa, uma saca-rolhas para abrir uma garrafa de vinho tinto e brindar
ao amor ou à ideia de revolução, não lhe tolda a razão. Numa das últimas cartas
para Pedro, escrita a 2 de Maio de 1992, em Bombaim, a arqueóloga diz que leu,
na Imprensa indiana, as felicitações de Washington pela entrada, sem combate,
em Kabul, das hordas fundamentalistas que ocupam o Afeganistão.
Dez anos mais tarde, para alimentar as incertezas que nos
inquietam, quem poderá felicitar Washington?"
*extractos de uma apresentação pública do livro feita pelo jornalista Júlio
Roldão
"Alva"
Miguel Urbano
Romance 2001
Campo das Letras
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