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A Lei da Selva
António, cumpria aquilo que os professores esperavam dele. Entretanto, de um momento para o outro, o seu aproveitamento escolar começou a decrescer. Levantou problemas, deixou de ir às aulas. A Directora de Turma (DT), informou o encarregado de educação solicitando-lhe a presença na escola. O pai, depois de várias pedidos, lá apareceu a fim de ser informado sobre a situação do seu filho e dos eventuais problemas que poderia estar a viver. Segundo a DT, era necessário ajudar o António para que ele ainda pudesse salvar o ano lectivo. No entanto, quando a professora julgou que o assunto estava bem encaminhado, o pai, com o maior dos desplantes, contra-atacou: "Para que é que o meu filho há-de vir à escola se ele a jogar futebol no clube, já ganha mais do que a Senhora Professora?" Perante tal resposta, a conversa pouco mais adiantou.
A procura de talentos no mundo do desporto está a tornar-se numa actividade caótica, à margem de qualquer ética ou moral, que alimenta, a grande maioria das vezes, os bolsos de "empresários" sem escrúpulos e as minguadas carteiras de pais que vêem na exploração dos próprios filhos a oportunidade para superarem a frustração económica e social das suas vidas. Neste âmbito, o futebol segue a quilómetros de distância das outras modalidades, pois os jovens são aliciados para os "treinos de captação", ou para outras acções de promoção que acabam, em muitas situações, por ser o primeiro passo para deixarem a escola. Depois, caso não cumpram o padrão estabelecido pela "cotação do mercado", ou tenham o azar de sofrer alguma lesão que será, muito provavelmente, mal tratada, são deixados à sua sorte. É esta a cultura dos clubes, sempre foi e não cremos que venha a ser modificada.
Jean-Marie Brohm, chefe de fila da nova esquerda surgida em França em princípios dos anos setenta, perguntava num "Le Monde Diplomatique", se "a lei da selva não será o estádio supremo do desporto?"
É evidente que se está a entrar na lei da selva quando crianças que deviam estar a brincar ao desporto são sujeitas a apertados sistemas de selecção onde as taxas de sucesso, logo numa primeira fase, não ultrapassam os 5%.! Não restam dúvidas que estamos num processo degradante que alguns dirigentes desportivos teimam em chamar de "formação desportiva", mas que só serve para detectar eventuais talentos que serão, o mais cedo possível, objecto de negócio.
O "The Sunday Times", chegou a anunciar que pais estão a receber 50.000 libras por contratos de miúdos de seis e sete anos, potencialmente habilidosos para o futebol. Crianças com cerca de 10 anos, já têm contratos anuais de 400.000 libras!
Por cá, vimos o nosso Presidente, em plena campanha eleitoral, promover escolas de jogadores de futebol de miúdos de oito e menos anos de idade, quando se sabe que o futebol neste país, como denunciou recentemente o Dr. João Amado, envolve as crianças numa teia regulamentar ilegal que, em nossa opinião, colide com a "Declaração Universal dos Direitos das Crianças". Tudo isto, é uma imoralidade, está a dar cabo das crianças, do futebol, do desporto e do país.
Passados seis anos, António, após ter sido triturado pela "máquina de talentos" dos clubes por onde passou, acabou como a grande maioria, por não singrar. Actualmente, com vinte e poucos anos e sem qualquer formação, continua ligado ao seu desporto favorito, só que agora como trolha nas sub-empreitadas dos estádios para o Euro 2004. Aos fins de semana, integrado na claque do clube, acompanha a sua equipa onde, através da violência colectiva, pode sublimar a ilusão perdida de um dia poder ter sido uma grande estrela do futebol profissional.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 110
Ano 11, Março 2002

Autoria:

Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa
Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa

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