Página  >  Edições  >  N.º 110  >  É só o rei que vai nú?

É só o rei que vai nú?

"A indisciplina pode ser combatida se se reconhecer autoridade aos professores, tanto através dos poderes públicos como pelos meios de comunicação social", afirmava, no D.N. de 03.02.02, Manuela Teixeira. O mesmo D.N. onde António Avelãs considerava que "a violência nas escolas não se pára enquanto houver focos de violência exteriores à escola, o que não quer dizer que não se deva tomar medidas para enfrentar a situação. Nesse aspecto melhorar a imagem social dos professores e reforçar a sua autoridade é um ponto positivo". No dia seguinte, num debate promovido pela TSF sobre o estado da educação escolar em Portugal, uma professora perguntava, mais uma vez, o que é que se pode fazer quando os meninos não querem aprender e não gostam de estar na escola.
Lê-se o que nós lemos. Ouve-se o que nós ouvimos e sente-se aquela espécie de claustrofobia dos becos sem saída para que os quais este tipo de intervenções públicas nos empurra. Não negamos que há focos de violência nas nossas escolas. Nem tão pouco esquecemos que há muitos professores assoberbados por tarefas que, de facto, não lhes competiria assumir. Sabemos, também, que há salas de aula que se transformaram numa espécie de trincheiras, onde aqueles que as habitam perderam o sentido do que ali se encontram a fazer, sem vislumbrar alternativas ao caos quotidiano em que sobrevivem. Vivemos, de facto, um tempo em que a pedagogização dos problemas sociais tem vindo a contribuir "para que a escolarização e a missão atribuída aos profissionais de educação se tivessem transformado em missões impossíveis" (Correia & Matos, 2001: 92). O que fazer ?
"Que fazer, então, com as crianças que ignoram o que é bom para elas e que se recusam a aceitar a nossa palavra ? Que fazer quando a nossa vontade de instruir (à qual não devemos, nem podemos, renunciar) é incapaz de provocar o desejo de aprender (que, infelizmente, não podemos decretar) ?" inquire-nos António Nóvoa num texto recentemente publicado. Não nos diz respeito ? É uma questão que, para nós professores, nos é estranha ? É uma problemática cuja resolução passa, sobretudo, por transformações sociais cuja responsabilidade compete ao Governo assumir e aos orgãos de comunicação social incentivar ?
É difícil aceitar que a problemática da indisciplina ou a da violência nas escolas não nos diga respeito. É difícil aceitar que a questão da autoridade dos professores ou a da sua imagem social seja algo que dependa mais de medidas que outros deverão adoptar do que da sua própria intervenção pedagógica, profissional, sindical, social e política. Por isso é que face a um "Que fazer ?", formulado em tons miserabilistas e desculpabilizantes, seja mais pertinente e útil confrontarmo-nos com outo tipo de questões: "O que fizemos ?" ou "O que é que andamos a fazer ?".
A não ser assim, só nos será possível continuar a ouvir, em uníssono e de forma confusa e atabalhoada, os gritos veementes, se bem que inconsequentes, que vão ecoando por aí. O daquele professor de Educação Física que através da TSF confronta o ministro com a agressão de que foi vítima por parte de um aluno. Ou o desabafo de todas aqueles alunos que afirmam que os professores não gostam de nós, queixando-se, afinal, que a Escola não é capaz de reconhecer os jovens que se encontram por detrás de cada um deles. Ou, ainda, o mal-estar dos pais a quem se exige, cada vez mais, que se docentizem. Ou, finalmente, a ofensiva da imprensa que pretende demonstrar que, em Portugal, a maior afectação de recursos para a Educação não tem vindo a produzir resultados educacionais significativos.
O retomar da discussão sobre a indisciplina e a violência nas escolas enferma deste ruído infernal. É afectado pela ambiguidade com que ambas as problemáticas são discutidas e perde-se no desprezo cruel que a perspectiva dos outros não deveria despertar. É como se todos usassem essa discussão como arma de arremesso, não se ouvindo mais do que um "o rei vai nú", confuso e polifónico. Mas quando seremos capazes de distinguir a nudez do rei da nossa própria nudez ? Era importante que fôssemos capazes de o fazer. Quanto mais não seja para, pelo menos, evitar o mais possível penalizar todos aqueles que, desde o berço, têm vindo, dia após dia, a ser penalizados. Aqueles de quem facilmente se diz que não têm voz, mas a quem dificilmente se reconhece que se a não têm, é porque poucos se encontram dispostos a ouvi-la. Quanto mais não seja, para não sermos, também, cúmplices activos na cruzada conservadora que identifica a crise da Escola como a crise da sua incapacidade em distinguir os mais dos menos capazes. Uma crise que, na verdade, tem a ver com as maiores dificuldade da Escola em conseguir naturalizar, hoje, as diferenças que ela própria ajuda a fabricar.

BIBLIOGRAFIA
  • CORREIA, José Alberto; MATOS, Manuel (2001). Da crise da escola ao escolocentrismo in STOER, S. R.; CORTESÃO, L.; CORREIA, J. A. (orgs.), Transnacionalização da educação: Da crise da educação à educação da crise. Porto: Edições Afrontamento
  • NÓVOA, António (2001). Eu pedagogo me confesso: Diálogos com Rui Grácio. Inovação, Vol. 14, nº 1 - 2, 9 - 33

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 110
Ano 11, Março 2002

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo