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Os (in) controversos TêPêCês

Trabalhos de Casa filme do iraniano Abbas Kiarostami, galardoado com a Palma de Ouro, Festival de Cannes 1998.

1. Na nossa ritualizada agenda escolar, também ela cada vez mais marcada pelos media, os trabalhos para casa (TPC) têm lugar cativo no sururu pedagógico que se repete todos os anos.
Os TPC são o "bicho papão". "Tiram o sono, fazem chorar e muitas vezes não deixam tempo para as brincadeiras e para os desenhos animados"; um verdadeiro "drama diário e familiar" (DN 8/10/00, p. 26). Em Singapura, uma "criança de dez anos mata-se por causa dos trabalhos de casa" informa o Público, na sua edição de 1/9/01, p. 33.
Talvez para evitar estes casos extremos, o Ministério de Educação da Bélgica (francófona) proibiu os TPC. Emparceira agora com a Finlândia, a Dinamarca, o Luxemburgo, a França, a Grécia e alguns estados alemães, que também legislaram no sentido de proibir ou reduzir os trabalhos de casa. Já a partir deste ano lectivo, aos professores belgas está interdito passar TPC aos alunos dos dois primeiros anos de escolaridade; no 3º e 4º anos essas tarefas são permitidas desde que não ocupem mais de 20 minutos por dia, e no 5º e 6º anos, os TPC não devem ir além da meia hora diária. Os nossos governantes ainda não se atreveram a tanto. Ou, porventura, já foram bem mais longe: no afã de tudo escolarizar, puseram os TPC, ou dito na linguagem oficial, o "Estudo Acompanhado", no plano curricular dos três Ciclos do Ensino Básico. O objectivo é que os alunos adquiram "competências" (o conceito da moda) que permitam a apropriação de "métodos de estudo e trabalho". E assim se prossegue na linha do primado dos processos e das metodologias em detrimento dos produtos e conteúdos; estes últimos, têm vindo a ser considerados, no pensamento pedagógico único que nos domina, como uma heresia vocabular a evitar.
Ainda de acordo com o Público de 23/5/01, a tendência legislativa para impedir os TPC "tem o apoio dos pedagogos"! Afirmam os ditos (em particular os psicólogos e afins) que os trabalhos para casa "estão fora de uso. São uma espécie de muleta que não serve a ninguém" (Nelson Lima, 2000); os deveres de casa servem para "para alimentar a ficção de um ensino mais exigente e rigoroso" (Cosme & Trindade, 2000).

2. Curiosamente, os pais belgas da Ufapec (Federação Católica de Associações de Pais) defendem posição contrária à do seu ministro, com base nos resultados de um inquérito realizado: 80% dos pais "está de acordo com a quantidade de deveres que os professores passam" e 8% "defendem mesmo mais TPC". De facto, os denominados trabalhos para casa, quando regulares, sistemáticos e diversificados e em complementaridade com as múltiplas actividades realizadas na escola, cumprem importantes funções no desenvolvimento (pessoal e educacional) das crianças e jovens. A escola massificada dos nossos dias, não permite, muitas das vezes, que aí se realize um trabalho individualizado e autónomo, quer de treino, pesquisa ou simples estudo. Isso o confirma um recente estudo, promovido pela APP - Associação dos Professores de Português, onde se reconhece, por exemplo, que "os alunos nas aulas de Português não escrevem muito, fazendo-o mais nos TPC" (O Ensino e a Aprendizagem do Português na Transição do Milénio - relatório preliminar, Fevereiro 2001, p. 82). O referido inquérito mostra que 67% dos docentes do 1º Ciclo marcam trabalho para casa (a grande maioria indicou que o faz três ou mais vezes por semana) como forma de promover a participação dos pais (p. 65). Ora aí está uma maneira de pais e filhos cooperarem; os primeiros, ficam a saber, em concreto, o que se aprende nos dias de hoje e constatam as potencialidades e fraquezas académicas dos seus educandos; estes, fazem os seus exercícios sob a supervisão de um adulto, em regime de tutoria, ou seja, alguém que está disponível, a cem por cento, para esclarecer as suas dúvidas e orientar as várias tarefas.
O bom senso dos professores e a capacidade real de coordenação entre docentes de um mesmo conselho de turma, evitará, sem dúvida, um risco decorrente do alargamento do "currículo nacional" que, neste ano lectivo, para além das 10 /13 disciplinas (conforme se trate do 2º ou 3º ciclo), introduziu mais quatro, as três "áreas curriculares não disciplinares" e uma outra "a decidir pela escola". Um eventual efeito perverso seria os alunos passarem a ter também TPC na "Área do Projecto", na "Formação Cívica" e até no "Estudo Acompanhado". Haja Deus!

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
lsouta@ese.ips.pt

  
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Edição:

N.º 107
Ano 10, Novembro 2001

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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