Não me ocorre que, depois de 1975, Jorge Amado tenha chegado a visitar alguma
das ex-colónias portuguesas de África, nomeadamente Angola, aquela que mais se
ligou, pela história e a cultura, ao Brasil nordestino, indubitavelmente a principal
fonte inspiradora da geração literária angolana da década de 50.
Se Jorge Amado - o mais lido, naquela época, dos escritores brasileiros nordestinos,
a par do sulista Érico Veríssimo - nunca visitou Angola, só razões estranhas
à literatura poderão explicar o facto: logo uma, até 1975, a de ser considerado
"persona non grata" pelo Governo de Salazar, que todavia convidara, em 1951,
o também nordestino, escritor e sociólogo, Gilberto Freyre para uma demorada
visita (mas prudentemente "enquadrada" por personalidades afectas ao regime,
como o jornalista e escritor Ferreira da Costa) a algumas "províncias ultramarinas",
entre elas, Angola. Desta viagem resultariam dois livros controversos, com que
Freyre consolidava, por um lado, a sua tese controversa do "luso-tropicalismo"
(que era uma antítese do "negritudinismo") e, por outro, servia os interesses
da política colonial da multirracialidade propugnada por Salazar. Eram esses
livros "Aventura e Rotina" e "Um Brasileiro em Terras Portuguesas".
Compreendia-se a discriminação: em 1951 Jorge Amado é distinguido, na URSS,
com o Prémio Internacional Stalin da Paz, que vai receber a Moscovo, ao mesmo
tempo que no Brasil, donde se exilara em 1948, com a cassação dos mandatos parlamentares
dos deputados do Partido Comunista, a que ele pertencia, o livro que suscitara
o prémio, "O Mundo da Paz", é apreendido e o autor incurso na Lei de Segurança
Nacional promulgada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Acrescia à discriminação
a diversidade da avaliação de uma obra que, embora reconhecida unanimemente
como uma emanação da vivência "luso-tropical", era lida, por conservadores e
progressistas, através de prismas ideológicos diferentes e, não raro, antagónicos.
Pelas duas leituras - o exotismo e o social - foi Jorge Amado celebrado em
Angola, território que beneficiava da excepcionalidade de poder adquirir directamente
no Brasil, por mercê do regime cambial, da displicente fiscalização alfandegária
e do vazio policial que não se repetia na Metrópole, as obras "proibidas" de
autores que só clandestinamente entravam em Portugal e aqui não eram editadas.
Quando, através das Publicações Europa-América, começaram a ser publicados com
alguma regularidade, na Metrópole, diversos livros de Jorge Amado, - apenas
"Terras do Sem Fim" e "Jubiabá" apareceram um pouco antes de 1950 - já em Angola
se liam, além destes, outros de grande impacto social e político, como "Capitães
da Areia", "São Jorge dos Ilhéus", "Seara Vermelha", "A Vida de Luís Carlos
Prestes, o Cavaleiro da Esperança", "O Mundo da Paz" e, mais tarde, no dealbar
da década de 60, "Os Subterrâneos da Liberdade", de 1954, - nesta altura com
riscos acrescidos, pois a PIDE instalara-se em Luanda em 1957. Era verdade que
já se sabia ter Jorge Amado cortado as suas ligações com o Partido Comunista
(para desgosto de muitos dos seus leitores fiéis) e encerrado o ciclo da "literatura
de combate" com a abertura de um novo ciclo com o romance "Gabriela Cravo e
Canela", de 1958, mas continuava a ser um autor "maldito" em Portugal pelos
livros do passado.
Poder-se-á dizer que, em Angola, desde a década de 50, todos os amantes da
literatura - leitores e praticantes - conheciam as obras mais distinguidas de
Jorge Amado, a uns servindo de "curioso" contacto com a sociedade "mestiça"
brasileira, com a qual de algum modo identificavam a sociedade "colonial" angolana;
a outros, plumitivos ou consagrados cultores da literatura aspirando a uma "identidade
literária" que exprimia já os contornos de uma prenunciada "identidade nacional",
servindo como paradigma de uma futura literatura angolana, realista, crítica
e libertária.
É assim que a maioria dos jovens literatos que seriam representados depois
pela chamada "Geração da MENSAGEM" (revista da Associação dos Naturais de Angola,
da qual foram publicados apenas dois números, entre 1951 e 1952), vai beber
a sua inspiração imagética no cenário poético e ficcional do Brasil, designadamente
no que identifica o regionalismo nordestino como um paradigma da sociedade mestiça
brasileira, em que o Negro também é protagonista. Mas não só: desse cenário
emerge uma consciência social libertadora que, animada pelo exemplo das independências
de de outros povos ex-colonizados da América Latina, - como Cuba - animaria
um pequeno grupo "mensageiro", em que se inseriam poetas como Viriato da Cruz,
Mário António e António Jacinto, a fundarem, em 1955, um efémero partido comunista
angolano, tomando por modelo, entre outros, o estatuto do Partido Comunista
Brasileiro.
Mas em 1977, numa palestra proferida, em Lisboa, no Instituto Democracia e
Liberdade, Mário António relativiza a representatividade do grupo que ele próprio
classifica como "protonacionalista", aludindo ao "caldo de ambiguidades que
alimentou a geração da 'Mensagem", e, explicando, com alguma ironia, que sendo
as pessoas "diversas na sua extracção sociocultural", ficava justificada a "opção
política depois realizada" por algumas delas, que chegaram a fazer versos a
Carmona, evocando as excelências da Grei....
Das "opções" que alguns assumiriam, na década seguinte à do "protonacionalismo"
do grupo da MENSAGEM e da revista que lhe sucedeu, CULTURA, era ele próprio
um exemplo, que serviu, todavia, para que outros seus camaradas fiéis às antigas
"opções" o votassem ao ostracismo, inclusivamente silenciando, em Angola, sobre
a inegável qualidade da sua poesia e da valiosa investigação literária que realizou
depois de, em 1963, se ter radicado em Portugal, sem lograr resistir à instrumentalização
a que foi conduzido por próceres do regime.
Era, de facto, real a ambiguidade do grupo "mensageiro", explicável logo pelos
condicionalismos políticos da época. Estranhamente, nunca se faz referência,
por exemplo, a um artigo de fundo do jornalista Agnello Paiva, também membro
directivo da Associação que editava a MENSAGEM, de louvor ao povoamento do Sul
de Angola, cujo título é paradigmático da sua "opção": "A Colonização e o 'Exército
da Resistência". Dir-se-ia que, com esta "mensagem", o articulista, muito conhecido
em Angola, procurava neutralizar os efeitos da matéria que vinha a seguir, bem
menos anódina do que a leitura de Mário António faz supor. Para além da colaboração
de futuros revolucionários e nacionalistas como Agostinho Neto, António Jacinto,
Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, António Cardoso, Antero de Abreu, Tomás
Jorge, Leston Martins ou Maurício de Almeida Gomes (só para mencionar alguns
angolanos independentistas, não obstante as diferentes "visões" da independência,
além do próprio Mário António), referem-se figuras internacionalmente conhecidas
como afectas aos movimentos pan-africanistas e libertários do Terceiro Mundo,
o que, tudo junto, valida afirmações como a de Pires Laranjeira, quando observa
que "a MENSAGEM funciona como publicação de um movimento cultural a transformar-se
rapidamente em movimento político (ou, de certo modo, de movimento político
baseado num profundo movimento cultural)"; ou de Manuel Ferreira: "É uma anunciação.
Não é ainda a ressurreição. Não é ainda a torrente úbere do universo angolano
a caminho da sua libertação. Isso virá depois. Com os anos, a cultura, com uma
mais aguda e generalizada consciencialização."
O que tem isto a ver com Jorge Amado (e também com José Lins do Rego, Graciliano
Ramos, Manuel Bandeira ou João Guimarães Rosa) e o Brasil - é expresso nos modelos
literários e nas invocações que os "mensageiros" receberam do País-Irmão, e
depois os seus epígonos, por contraposição à norma literária e à sociedade colonial
portuguesas. Servem de emblema, entre muitos outros, versos como estes:
De Mário António, em 1952:
Quando li Jubiabá
me cri António Balduíno.
Meu primo, que nunca o leu
ficou Zeca Camarão.
Eh Zeca!
De Maurício de Almeida Gomes, em 1958:
Ribeiro Couto e Manuel Bandeira,
poetas do Brasil,
do Brasil, nosso irmão,
disseram:
"-É preciso criar a poesia brasileira,
de versos quentes, fortes, como o Brasil,
sem macaquear a literatura lusíada."
E foi assim que, através de Jorge Amado, dos modernistas brasileiros e também
dos neo-realistas portugueses, chegaram a Angola os sons e as palavras dos versos
e das estórias que inauguraram a moderna literatura nacionalista angolana.
Leonel Cosme
investigador
|