Elisa tem 15 anos.
Numa manhã de 5ª feira não teve aulas no liceu.
Para "gastar" a modorra daquele quotidiano citadino,
acompanhou a mãe até ao "shoping". Encurralada nas bichas
da catedral de consumo, seguiu até às vitrines mais próximas.
Viu-se nos espelhos desfocados das prateleiras repletas de mercadorias várias.
Ultrapassou as pessoas que arrastavam com o corpo obeso, o carrinho reluzente
das compras. Vasculhou objectos expostos nas bancas de néon florescente.
Deu-se conta que toda aquela gente se parecia com os ratos condicionados que
vira num filme, farejando o toucinho no labirinto dum laboratório.
As pessoas acaparavam guloseimas e enfeites. No tal carrinho
reluzente das compras, acumulavam-se gorduras, hidratos de carbono, álcoóis
e refrigerantes com aditivos e conservantes E360.
Estampavam-se no rosto as angústias das donas de casa
olhando no talho a carne pendurada. Seriam vacas loucas?... A febre aftosa vinha
também à memória.
Elisa pressentiu os temores da mãe. Não lhe escaparam
também os receios de uma sociedade a abarrotar de comida, mas que curiosamente
tem medo de comer, enquanto outros morrem à fome.
Bugigangas, cosméticos e farpelas completavam o festim
das compras.
À boca da caixa, equipada com detecção
electrónica para evitar que qualquer eventual roubo escape ao vídeo-panóptico
camuflado por detrás dos tais espelhos foscos, os pagantes empunhavam
os cartõezinhos de plástico da conta bancária.
Elisa ajudou a meter as bugigangas, as gorduras e os hidratos
de carbono na mala do carro. No caminho para casa, através da janela
do automóvel, olhou o outro lado da cidade. Nos escombros dum bairro
degradado, brincavam crianças por entre ruínas e caixotes de lixo.
Elisa ajudou a mãe a tirar as compras do carro. Em casa,
ao arrumar o café perfumado de Moçambique, imaginou os camponeses
nos terrenos alagados pelas chuvas torrenciais daquele continente africano,
onde morrem milhares de pessoas de doença, fome, genocídio e guerra.
As bananas da Colômbia que pôs sobre a mesa levaram-na
a imaginar também aquelas paragens da América Latina, onde morrem
velhos, mulheres e crianças por causa da miséria, da droga e da
violência.
Elisa foi até á sala. Olhou o pequeno ecrã
luminoso da televisão. Estava a dar o noticiário:
- Mais palestinianos mortos!
- Mais emigrantes clandestinos!
- Mais drogados!
Depois, notícias com peso desigual da importância
dada, relatavam o encontro de Davos na Suíça e Porto Alegre no
Brasil. Os grandes senhores da finança decidiam coisas sobre o mundo
em ricos hotéis suíços. Depois, por escassos minutos, curtas
notícias da reunião alternativa, na cidade de Porto Alegre. Organizações
não governamentais manifestavam-se num Forum de Solidariedade, a favor
de uma sociedade mais humana.
Elisa, a jovem aluna de liceu, de 15 anos, moradora no 3º andar
dum apartamento, num prédio do centro da cidade, olhou ainda o lumínico
ecrã de televisão. Viu um pequeno índio do Amazonas. Um
índio com fartos cabelos negros e com a cara pintada de traços
multicolores. O sorriso naquele rosto, foi a única imagem feliz que guardou
desse dia, sem escola, em que lhe viera à cabeça tanta coisa incómoda
e estranha...!
Naquela noite dormiu mal. Vinham-lhe à cabeça
tantas perguntas...
No dia seguinte, de manhã, Elisa foi mais cedo para
a Escola C+S. E, antes do começo da aula de História, escreveu
isto no quadro:
- Que relação há entre a minha vida e as crianças
pobres do bairro degradado, aqui ao lado?
- Que laços ligam a fome de uns e a abundância de outros?
- Que faz com que uns tenham fome e outros tenham medo de comer?
- Que fatídico compromisso partilho eu, por viver num país
europeu onde gente rica negoceia e estabelece teias complexas e ocultas com
outras pessoas de países pobres, explorados e oprimidos, para que o
nosso quotidiano se reproduza assim, deste modo?
Jacinto Rodrigues
Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto
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