Estudantes estrangeiros descrevem a sua experiência
no nosso país
A criação do programa de intercâmbio universitário
Erasmus permitiu que muitos estudantes europeus pudessem começar a conhecer
melhor o continente onde vivem, e onde, apesar das diferenças que subsistem,
tentem encontrar uma identidade comum. Quisemos saber o que pensam os estudantes
estrangeiros a estudar no Porto àcerca da cidade, do país, dos
portugueses e do nosso sistema de ensino. As expectativas, as críticas
e os encantamentos de quem tem o previlégio de observar de fora um povo
e os seus costumes.
Uma das paragens obrigatórias seria obviamente uma residência
universitária. É lá que fica alojada a maioria dos estudantes
estrangeiros que para aqui viaja, sem distinção de nacionalidade
ou de língua, mas certamente de recursos económicos. Foi numa
das salas de estar comuns da residência do Campo Alegre, no Porto, bem
perto de um dos mais emblemáticos espaços verdes da cidade, o
jardim Botânico, e do pólo 3 da Universidade do Porto, que fomos
encontrar Jurgen, Flaviana e Ionut. Apesar de terem chegado há pouco
tempo ao nosso país - e exceptuando a Flaviana, que é brasileira
- o alemão e o romeno falam já um português bastante razoável.
Ionut Ciocodeia tem 22 anos, é estudante de economia
na Universidade de Bucareste e veio para Portugal para aprofundar os seus conhecimentos
de Gestão e de Fiscalidade. Apesar de já no seu país ter
ouvido falar deste cantinho da europa, não sabia exactamente ao que vinha.
As diferenças entre os dois povos, afinal, revelaram-se poucas. Os portugueses
são muito semelhantes aos romenos, "talvez um pouco mais fechados", salvaguarda
Ionut, "mas essencialmente latinos, sempre disponíveis para ajudar os
outros".
Reconhecendo que na sua escolha influiu o facto de o nosso
país ser um dos mais baratos da europa ocidental, e permitir por isso
uma vida mais desafogada por comparação aos países do norte,
refere também que Portugal lhe interessou por constituir um bom exemplo
de estudo sobre o impacto económico da integração europeia
nos países menos desenvolvidos. É o caso da Roménia, que
irá integrar a União Europeia em 2007. Alguns dos seus colegas,
aliás, inscreveram-se exclusivamente na cadeira de "Integração
Europeia", para melhor perceberem os seus efeitos no futuro do seu país.
Apesar de terem vivido quase cinco décadas sob um regime
económico de orientação estatal, Ionut considera que os
seus compatriotas estão preparados para o desafio da economia capitalista.
"Haverá algumas dificuldades própria de qualquer transição
de fundo, é certo, mas o país tem-se vindo a preparar gradualmente,
por mais que isso ainda custe a muitas pessoas". Explica que o nível
de vida da classe média romena é muito semelhante ao português,
pelo que não encontrou muitas dificuldades em conseguir viver razoavelmente.
Enfim, "como um estudante, mas é agradável...".
Tal como acontece na vida quotidiana dos dois povos, o romeno
não vê grandes diferenças entre os sistemas de ensino dos
dois países. "Provavelmente aqui haverá uma melhor complementaridade
entre a componente teórica e a prática, mas na Universidade de
Bucareste os meios técnicos são melhores. Os computadores, por
exemplo, são mais rápidos..."
Apesar de não querer ser identificado, Pepe - chamemos-lhe
assim - também quis entrar na conversa e queixou-se principalmente da
organização dos portugueses. "Em outros países europeus,
como a Itália ou a Espanha, os estudantes estrangeiros são tratados
de acordo com a sua especificidade. Aqui não, tratam-nos como mais um
estudante português". O problema, explica este estudante espanhol, até
nem é tanto linguístico, mas tão só da forma como
a matéria é dada (em perfeita igualdade de circunstâncias)
e da maneira como os professores fazem face à diversidade.
"Uma coisa é entender a língua, outra é
estudar termos técnicos que não são iguais em todo o lado",
diz Pepe, queixando-se dos exames, que são exactamente os mesmos para
alunos nacionais e estrangeiros, o que torna "difícil ter o mesmo aproveitamento
dos alunos portugueses". Razões suficientes, na opinião dele,
para dizer que no nosso país parece não existir ainda um verdadeiro
"espírito europeu" e que Portugal deve julgar-se uma "ilha" no continente.
Sentada ao seu lado, Flaviana Lima, 20 anos, estudante de arquitectura,
salienta que Portugal é um país de contrastes. Pepe confirma essa
ideia, visível, segundo ele, nas próprias faculdades da Universidade
do Porto. Apesar de não querer revelar em qual delas está inscrito,
torna-se óbvio pela conversa que não é certamente numa
das mais bem apetrechadas. "Algumas delas <estão muito bem equipadas,
mas outras nem por isso...". Consultar a internet, por exemplo, pode ser um
exercício exasperante. Ao mesmo tempo que explana esta ideia, ri-se para
os colegas que confirmam a sua crítica com um sorriso cúmplice.
"Aqui os computadores são muito lentos...".
Admitindo estar a recorrer a exemplos de ordem prática
mais do que a deambulações teóricas sobre as diferenças
de ordem pedagógica, Pepe exemplifica com a matrícula na sua faculdade
de origem para mostrar as clivagens entre os dois sistemas de ensino: "Lá,
demora-se cinco minutos através do computador; cá, perde-se um
bom par de horas a preencher uma série de papelada". E se calhar, admite,
a culpa até nem é da universidade mas da falta de apoios do governo|
no sentido de modernizar a máquina administrativa".
Críticas igualmente para a organização
dos portugueses, que se revê na realização da capital europeia
da cultura. Em Salamanca, que irá organizar o evento no próximo
ano, Pepe garante que está praticamente tudo pronto. "Aqui nem por isso.
Estamos em Maio e ainda há obras enormes a decorrer". Mais uma vez, a
responsabilidade é atribuída aos governantes, porque as pessoas,
essas, parecem "trabalhar muito".
Apesar destes "senãos", elogia os colegas portugueses,
que o receberam bem. Na primeira oportunidade, ofereceram-lhe os apontamentos
de anos anteriores para que pudesse pôr a matéria em dia. "Não
esperava tanto nesse aspecto. Em Espanha não é assim...".
No topo da grande mesa rectangular, que serve tanto para as
refeições como para os momentos de convívio, está
Jurgen Ramos, 24 anos, estudante de História, que aprendeu a falar um
pouco de português com alguns dos seus familiares que se encontram radicados
na Alemanha. Quis vir a Portugal para melhorar a fluência da língua
e conhecer melhor as suas raízes: a mentalidade, a história, a
educação, a cultura, e sentir o quotidiano. Para tal, inscreveu-se
nas cadeiras de História Contemporânea de Portugal, História
Moderna de Portugal, História do Porto e História da Mentalidade
Contemporânea Portuguesa.
Na sua faculdade de origem, situada no sul da Alemanha, as
condições são algo diferentes da faculdade de Letras do
Porto: uma biblioteca com mais de 7 milhões de títulos, cerca
de uma centena e meia de computadores, num edifício que apesar de ter
sido construído nos anos setenta está bem equipado e é
considerado "moderno", mesmo para os padrões alemães. As turmas
não excedem os dez, quinze alunos.
Mas não é apenas nos meios materiais que a diferença
se revela substancial. A hierarquia entre estudantes e professores, por exemplo,
não é sentida da mesma forma do que aqui. "Lá, ninguém
trata os docentes por Senhor Professor Doutor", ironiza, "e têm sempre
um espaço no horário para receber os alunos, ao contrário
do acontece aqui". Pepe e Flaviana concordam. Nos respectivos países,
afirmam, alunos e professores tratam-se geralmente pelo nome próprio.
"No Brasil não é necessário dirigirmo-nos a um professor
tratando-o por arquitecto. Quando vim para cá achei isso muito estranho...",
diz Flaviana.
Jurgen não gosta de utilizar os termos "pior" e "melhor"
para descrever o país. Prefere a palavra "diferente", garantindo que
até ao momento gostou do que viu. Acabou, no entanto, por contrariar
um preconceito que trazia da Alemanha: "Julgava que o povo português era
mais aberto e relaxado, mas afinal os alemães são mais. Aliás,
o povo português é, em geral, muito fechado, mesmo em relação
aos seus vizinhos espanhóis...". Uma espécie de "complexo de inferioridade",
diz Jurgen, que na sua opinião se baseia no facto de a Espanha ter conhecido
um desenvolvimento económico mais acentuado em igual período de
tempo e de hoje fazer "sombra" a Portugal. Aliás, a visibilidade internacional
do nosso país no exterior deixa muito a desejar. Os jornais alemães
raramente falam de Portugal, e quando falam referem-se-lhe num contexto europeu
mais amplo.
Mas o que definitivamente considera estranho é o nível
de vida que os portugueses aparentam ter, quando comparado com as estatísticas
que demonstram precisamente o contrário. "Os carros de alta cilindrada
que circulam pelas ruas, os centros comerciais cheios de gente... nada disso
parece corresponder à realidade económica do país". Descobriu,
além disso, que "saudade" é um termo que se aplica bem ao estado
de espírito dos portugueses, ao ar melancólico e triste das pessoas.
"Sentia que seria assim antes de vir para cá e cada vez tenho mais essa
sensação", afirma, ressalvando, no entanto, ser um "povo simpático".
Flaviana concorda, mas considera-nos também "conservadores",
uma característica que associa à antiguidade do país e
ao seu apego aos costumes e tradições. Um traço que choca
com a contemporaneidade da arquitectura portuguesa, que considera ser em si
mesma uma "escola". "Pode estar a olhar-se para um edifício sem qualquer
contextualização e perceber-se que ele é da autoria de
um arquitecto português", explica.
É por isso, diz, que a maior parte dos alunos sai daquela
faculdade a querer fazer "aquele" tipo de arquitectura. Os estudantes estrangeiros
chegam mesmo a sentir-se "inibidos" em desafiar a coerência dessa linha.
"Não é que isso seja mau, pelo contrário, já que
estamos aqui para aprender outras formas de entender a arquitectura".
Os sistemas de ensino não são assim tão
diferentes, mas considera que aqui os professores são muito mais "sistemáticos",
formando arquitectos com uma mesma "linha de raciocínio". "É sem
dúvida uma das melhores de arquitectura da europa", ressalta, na qual
se consegue desenvolver um trabalho contínuo e "menos frenético"
(por funcionar por anos lectivos e não por semestres, como acontece no
Brasil).
O que não gosta mesmo é dos buracos e da chuva,
confessa, mas aprecia muito a cidade e particularmente o trabalho que está
a ser desenvolvido no centro histórico. Outra das facetas que lhe agrada
é a escala da cidade, que "sem ser muito grande tem tudo o que uma grande
cidade tem para oferecer".
Caroline Didier, 22 anos, também veio estudar arquitectura,
ao abrigo de um protocolo entre a Universidade de Nancy, no noroeste de França,
e a Universidade do Porto. Está a viver num quarto alugado, mas tem a
vantagem de ter uma vista previligiada sobre um imenso arvoredo situado no interior
de um dos quarteirões do centro da cidade. Foi na varanda, sob o sol
de fim de tarde, que a conversa principiou nos portugueses e nos seus "estranhos"
hábitos. Como chegar "constantemente atrasado", por exemplo.
"Os portugueses são habitualmente pouco pontuais", afirma
Caroline. "Em tudo: desde os prazos de entrega dos trabalhos na faculdade até
aos programas de televisão. Um filme é sempre anunciado como passando
"à noite", mas nunca indicam o horário... pode ser às 2
ou 3 da manhã". Agora, quase um ano depois da sua chegada, admite com
um sorriso tímido que também ela já não vai cumprindo
os horários com rigor.
Apesar de na sua perspectiva de arquitecta considerar que o
Porto não tem uma "unidade urbana" - "e isso é bem visível
nas obras do Porto 2001 porque as diferentes frentes não têm diálogo
entre si", diz -, enamorou-se da especificidade, da cor e da luz da cidade.
Pelo meio, destaca as potencialidades do centro histórico, que, tal como
acontece em diversas cidades e vilas francesas, pode converter-se num excelente
pólo de fruição do espaço público. Mas os
portuenses, na opinião dela, não parecem dar a devida atenção
ao património da cidade. "As pessoas preferem construções
modernas, perto das grandes vias e dos locais de comércio, como os centros
comerciais. É raro encontrar alguém que veja beleza numa casa
antiga".
Já Michelle Frenken, uma alemã de 24 anos que
mora no quarto ao lado, considerou particularmente agradável o facto
de a cidade ter muitas espaços verdes no interior da sua malha urbana.
Gosta também da diversidade de ambientes e paisagens que a cidade ostenta.
"Há sítios muito bonitos, principalmente na Ribeira e em Miragaia".
Chegou a Portugal há apenas um mês, mas já
tinha estado no Brasil cerca de um ano. Foi lá que aprendeu a falar português,
que se torna perceptível no seu leve sotaque. Quer ser professora do
ensino especial. Actualmente, está na Faculdade de Letras para estudar
literatura alemã, brasileira e cultura portuguesa, começando já
a ter uma percepção do quotidiano e do estado de alma nacional.
Quanto às aulas propriamente ditas, Michelle considera
que os alunos são pouco interventivos e participantes. "O professor assume
sempre o papel principal". Aliás, de uma forma geral considera que os
colegas receiam falar e dar a sua opinião, uma atitude que, diz, seja
talvez uma "herança do regime salazarista". Uma herança que se
estende ao próprio país, que ainda possui muitas marcas de pobreza
que os fundos comunitários não apagaram.
"Quando se olha para os carros e para as pessoas não
se diria que é um país pobre no seio da União Europeia.
É muito estranho, porque parece que a imagem exterior se revela de extrema
importância para os portugueses. Ter um carro, um telemóvel ou
ir ao restaurante torna-se mais importante do que satisfazer as necessidades
básicas", opina Caroline. "Ninguém pergunta que curso se frequenta;
pergunta-se quanto se ganha...". Uma "pobreza de espírito" que, consideram
as duas estudantes, contrasta vivamente com a riqueza cultural e patrimonial
do país e não reflecte de forma alguma as suas potencialidades.
Ricardo Jorge Costa
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