Página  >  Edições  >  N.º 102  >  Carta com registo antigo

Carta com registo antigo

1. carta

Caro José Paulo Serralheiro

Sabe que escrevo pouco e falo menos. Não sou dada a escrever e a falar quando sinto que vou nada acrescentar.

Mas não é a primeira vez que me vejo tentada a dizer-lhe que os seus editoriais valem a Página da Educação. É que eles, brotando da sua autenticidade, têm essa qualidade (que vai rareando) de acrescentar alguma coisa.

Neste último, nem é o caso do seu conteúdo principal mas o que nele se perscruta de coragem em cutucar a onça com vara, sem os subterfúgios dos que, deslumbrados pela sua notoriedade, se deixam absorver, em nome da urgência em aparecer e em falar, passando a sua condição de contestação a conveniente peça constitutiva do puzle da dominação (mesmo - e principalmente? - quando o discurso exibe uma humildade tão tocantemente subversiva que mais não é preciso à sua legitimação).

Em nome do papel activo do receptador na construção do texto, queria dizer-lhe que percebi.

E, no gosto íntimo deste mês de Abril, deixe-me oferecer-lhe um pouco de mim (no bom e no mau, é a única coisa que oferecemos aos outros) num dos registos com que sempre terminava o meu dia escolar: primeiro ano de actividade na minha escola de Oliveira do Douro, final dos anos oitenta.

Muito obrigada
Rosa Soares Nunes

P.S. - Quanto às notas serem o grande critério de entrada nos cursos de formação de professores, contra o que eu desejaria, cada vez mais me deparo com fortes razões para desconfiar da qualidade humana dos detentores das grandes notas. Mas os caminhos alternativos são ainda tão do foro da utopia?

 

2. registo

Ainda uma vez, deixe-me partir da intimidade da minha sala de aulas, onde está contido o universo.

As aulas começas às nove.
Mas eles chegam devagar.
Não vêm os quatro juntos. Vão chegando e distribuindo-se pelas turmas de pertença, esquecidos de um ritmo marcado ao som da campainha.
As noites são longas. Pela madrugada adentro, tudo no meio da rua, só lá fica a mãe para rebentar de pancada. O vinho? a droga?, dizem as mães de alguns.
O meu (o M.) está sob a mira de todo o corpo docente, de todo o corpo auxiliar, da associação de pais (dos seus bem comportados dirigentes) e, agora, por via de fazer peito a quem, na escola, do alto do seu poder, destratou o irmão mais pequenino, também da própria Junta de Freguesia, reclamada a (com a sua autoridade democrática, facilitar o processo da sua expulsão.

Hoje, à entrada, havia um gato no recreio.
Andavam à volta dele e o gato não fugia.
Por artes do M., quando cheguei à sala já o gato lá estava.
Os outros não tinham conseguido. Mas ele, ameigando-o ao colo, transfigurado numa grande ternura, conseguiu convencê-lo.
Quiseram retê-lo na sala. Expliquei que ele ficaria connosco se o tratássemos bem, lhe déssemos de comer e, sobertudo, não o prendêssemos.
Indaguei da sua opinião quanto à coisa mais preciosa para as pessoas e para os animais: o M. disse que era o comer; o D. que era a liberdade.
Disse-lhes que, se o deixassem livre de decidir quando queria estar connosco talvez ele acabasse por ficar.
O gato foi e veio.
Quando, depois do intervalo cheguei à sala, já lá estavam todos (o que não era habitual) e o silêncio era grande: no canto da biblioteca, o gato dormia na manta amontoada para ficar maos fofa.
O gato dorme a sono solto com um pão com manteiga aberto ao pé da boca.
O sol cobre o gato e deslaça a manteiga.
De vez em quando vão visitá-lo e de cada vez reforçam o falar baixinho. Há uma harmonia especial na sala. Apesar da escola.

Rosa

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 102
Ano 10, Maio 2001

Autoria:

Rosa Soares Nunes
Professora
Rosa Soares Nunes
Professora

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo