Há por aí quem considere que os professores são criaturas
em estado de graça, enquanto outros tendem a considerá-los uns
desgraçados. Nem oito, nem oitenta. Os professores não são
anjos nem demónios. São, como as outras pessoas, seres aprendentes.
Se aprendem ou não, isso depende da vontade e da circunstância,
como adiante iremos ver.
A Dona Glória trabalhava a dias em casa da Dona
Licinha e era muito bem tratada. Não havia dia algum que a patroa
lhe não deixasse sobre a mesa da cozinha o pagamento do serviço,
uma chávena, um punhado de bolachas embrulhadas num guardanapo, o açucareiro
e uma colher. Sob a colher, um papelinho com a recomendação de
que não deixasse de a utilizar e não metesse no chá a colher
que iria encontrar dentro do açucareiro. A professora Licinha bem porfiava
na recomendação. Porém, quando voltava a casa, encontrava
a colher do açúcar completamente envolvida no produto, numa placa
dura que dificilmente descolava com a lavagem.
Só quando, por via de uma súbita enxaqueca, voltou
para casa a meio da tarde, é que a professora Licinha descobriu que a
Dona Glória não sabia ler. E, com o cuidado devido à situação,
repetiu, de viva voz, a recomendação. Remédio santo...
Inteligente e atenta (como qualquer professora), a Licinha
reflectiu sobre o episódio. E pensou que talvez tivesse alguma relação
com um problema que vinha defrontando na escola.
Na escola da Licinha, as professoras tinham decidido dispensar
os alunos do uso dos manuais. Mas o ano lectivo ainda só ia em Novembro
e as queixas sucediam-se. A Dona Augusta, que era a auxiliar de acção
educativa, servia de porta-voz à crispação dos pais:
- Como é que podemos ajudar os catraios nos
trabalhos de casa, se não temos livros para eles lerem a lição?"
- Como é que os miúdos podem aprender
se não tiverem livros?
Os mais atrevidos (ou assertivos, como agora se diz) iam mais
longe no comentário crítico:
- Estas modernices ainda vão acabar mal...
O ambiente naquela escola já não era dos melhores.
E as professoras estavam prestes a ceder ao senso comum, de modo a não
pôr em risco a sua sobrevivência profissional:
- Que se lixe a pedagogia! Se os pais nos deram o seu
dinheiro, deixemo-nos de modas. A ideia de comprar llivros do Torrado, da
Matilde e da Sophia fica para depois. Vamos mas é fazer a vontade aos
pais. Compramos os manuais... e pronto!
A Licinha discordou. E propôs que se fizesse uma reunião
com os pais dos alunos, para resolver a situação. Aproveitando
a oportunidade ? que as reuniões não eram muitas ? também
teriam ensejo de explicar aos pais por que já não se fazia "a
prova de Natal" naquela escola e que, ao contrário do que muitos
críticos afirmavam ? e até alguns dirigentes sindicais! ? a avaliação
no "primário" não era "facilitista".
Os pais tinham correspondido ao convite. O horário correspondia
aos seus interesses e ainda acabava a tempo da desobriga da missa vespertina.
Mas a reunião não estava a decorrer do modo mais auspicioso. Às
tentatióvas de persuasão da Licinha e companheiras, o pai do Chico
Melro ripostava:
- "A senhora que me desculpe, mas não sou
pugilista do que a senhora disse!"
As professoras bem argumentavam que os manuais contêm
erros grosseiros, que o peso das mochilas é um perigo para as costas
dos meninos, etc. Bem insistiam num discurso de código restrito que lograsse
chegar à compreensão dos pais, mas o pai do Chico Melro não
desarmava:
- Está tudo muito bem, as senhoras é
que tem estudos e eu só fiquei com a terceira mal feita. Mas não
sou pugilista de os catraios aprenderem sem livros. Onde é que já
se viu?
A Licinha e as companheiras estavam quase a desistir. A praga
do pai do Chico Melro ? que era o opinion maker da aldeia ? arrastava
os restantes para uma conclusão lógica e em tudo oposta às
intenções das professoras. Isto é, sem livro de leituras
ou de fichas, as criancinhas nunca haviam de chegar a doutores. As novas professoras
deveriam seguir o exemplo da Dona Ofélia, mestra de gerações,
que nunca se esquecia de rezar as orações que encimavam as páginas
do livro único de leituras e de mandar fazer leitura continuada, enquanto
corrigia as lousas e as sebentas. Ela é que sabia. E todos naquela sala
lhe haviam passado pelas mãos (em sentido literal, aliás...).
Quase vencidas pelo pugilismo do pai do Chico Melro,
as professoras ainda esboçaram uma terceira tentativa. O derradeiro e
rebuscado argumento utilizado era o do desperdício que significa comprar
vinte ou trinta livros todos iguais, se os alunos poderiam beneficiar do acesso
a diferentes leituras, se comprassem livros de histórias, ou temáticos.
Se esta é uma ideia difícil de dar a entender
a "especialistas" como o Prado Coelho ou o António Barreto,
é missão quase impossível de passar a pais que, como é
sabido, nunca leram uma linha de um qualquer livro de ciências de educação.
Mas, como se virá a concluir, tal como os professores, os pais dos alunos
das nossas escolas são seres inteligentes. E se tudo lhes for explicado
de modo que entendam, acabam por perceber que as coisa não têm
de ser como sempre foram.
Então, a Licinha interpelou a mãe da Ritinha,
que já dormitava na última fila de carteiras:
- " senhora Adélia, a senhora comprou a
"Maria" desta semana?
- Concerteza, minha senhora, mas em que é que
isso vem ao caso?... ? respondeu a Dona Adélia, um bocado aturdida
pela inusitada interpelação, enquanto esfregava os olhos com
o auxílio do dedo mindinho.
- Isso é o que vamos ver... Diga-me quantas
pessoas são lá em casa.
- Ora bem, somos eu, o meu Carlos, quatro filhinhos,
o meu sogro (fora a minha sogra que Deus a tenha em eterno descanso...), mais
os meus pais que ainda são vivos graças a Deus, minha senhora.
Mas olhe que não a estou a perceber...
- Eu já lhe explico. Então, são
nove pessoas ao todo, não é?
- ?, sim, minha senhora.
- E a Dona Adélia só comprou uma "Maria"?
- Ora adei, quantas havia de comprar? ? retorquiu
a Dona Adélia.
- Não comprou nove, pois não?...
? atirou a Licinha, triunfante.
- Agora é que vocême lixou! ? concluiu
a D. Adélia.
A assembleia não tugiu nem mugiu. Estava ganho o dia.
E o pai do Chico Melro não abriu o bico, pois tinha ido às cordas
no terceiro round...
José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves
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