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Sentados à porta do desenvolvimento

Editorial. Setembro.1996

Serena e tranquilamente o país está sentado à porta do desenvolvimento. Sentadinhos, pacatos, tranquilos, preguiçosamente vamos coloquiando, uns com os outros, em voz baixa. Sabemos que a vida dos pequenos e dos grandes sacanas deste país continua a escorrer lindamente. Fechamos serenamente os olhos e os ouvidos e quando os abrimos vemos que um dos pequenos ou grandes sacanas se tornou novo rico. Plantou-se e medra no meio de silenciosos novos pobres.

Confiantes, serenos, tranquilos, estáveis, vemos os novos patrõesinhos sentar seus rabos nas cadeiras rascas e gastas das repartições e serviços e espingardear em direcção aos anteriores patrõesotes. Serenamente sabemos que neste país os padrinhos e as madrinhas são poucos mas democráticos. Baptizam todos os que estiverem dispostos à reverência, independentemente da filiação partidária. Mudaram os afilhados que ocupam agora o poder. Não mudaram os padrinhos e as madrinhas que põem e dispõem do poder. Somos todos reféns de meia dúzia de alarves que dominam este país. Todos longe de ter perdido a mentalidade feudal.

O Verão esteve fresco, como convém a um país suave e tranquilo, tivemos menos fogos florestais e os jornais à míngua de notícias sobre o trabalho, relataram mais crimes, mais acidentes de estrada, mais sangue perdido pacata e inutilmente. Mesmo assim, do meio de toda esta tranquilidade e preguiça, deste fecho do país - não para obras, mas para que ganhe um pouco mais de bolor - um facto saltou e tornou-se campainha vibrante difícil de suportar. Em Oleiros-Cervães-Cabanelas grupos de cidadãos, abandonaram a sua cidadania e transformando-se em populaça querendo expulsar um grupo de cidadãos de etnia cigana da sua área de residência. Ou por falta de notícias ou porque numa ou outra redacção se encontrava algum jornalista em serviço o acontecimento chegou-nos.

O Governador Civil de Braga, Pedro Bacelar de Vasconcelos, foi cuspido e insultado, ele que é, quis ser, fez o que pode para ser, o mais alto representante do Estado na região.

No momento em que escrevo o governo mantém-se tranquilo, sereno, dialogante, estável. Não soube distinguir e fazer distinguir - com a prontidão exigida - direitos de cidadania de actos de arruaça. As oposições também não. Vários autarcas mostraram uma atitude estúpida, imoral, cobarde, politicamente miserável. Os 'grandes' e os 'pequenos' políticos sabem que o voto de um cidadão vale tanto como o de um arruaceiro. Sabem ainda que o que dá as cadeiras gastas e rascas do poder, onde sentam os seus rabos, são os votos. Estão habituados a que os cidadãos portugueses se indignem pouco, esqueçam depressa, sigam no momento do voto a clubite partidária e por isso não penalizem a imbecilidade de quem os governa.

Mas esta campainha de alarme continua a zunir e a mostrar que se estamos sentados à porta do desenvolvimento vamos importando a estupidez e os problemas que cada vez mais são característicos das sociedades ditas desenvolvidas.

Esperemos que também entre nós não existam apenas gestores do oportunismo rasca. Que o exemplo, vindo de Paris, a propósito dos 'sans-papiers', nos diga qualquer coisa. Nos mostre que não vivemos num país de gente que não gosta só de ver o mar mas também aprecia o ruído das vagas, a força dos grandes movimentos colectivos. Em Paris tivemos Povo nas ruas, os Sindicatos tomaram partido, os intelectuais gritaram, a Igreja de São Bernardo abriu as portas aos perseguidos. Sentimos que ainda existe esquerda porque existe solidariedade em França.

A escola portuguesa e os seus professores que se preparem para estas importações. As nossas escolas são frequentadas por filhos de 'lusitanos limpos e estúpidos', por filhos de portugueses de várias misturas, raças e etnias e pelos filhos dos estrangeiros que vivem e trabalham connosco.

São nossos alunos os filhos dos ciganos, dos negros, dos asiáticos, das prostitutas e dos pais dos filhos das prostitutas, dos delinquentes, dos drogados, dos bêbedos, dos arruaceiros de toda a espécie, dos marginais, dos hetero sexuais, dos homossexuais, das lésbicas, dos desempregados de curta, média e longa duração, dos pequenos e dos grandes patrões, dos excluídos, da pequena, média e grande burguesia, dos divorciados e das divorciadas, dos pequenos e grandes traficantes de droga, dos ladrões com escrita, contabilistas e advogados e dos ladrões de ocasião, dos bem postos e dos mal postos na sociedade. O que a sociedade nos pede, enquanto professores, é que tenhamos a capacidade de - consoante a idade - ver em cada um dos nossos alunos apenas uma criança, um jovem ou um adulto. Nada mais. Se possível um pouco mais: a capacidade de também manifestarmos a nossa indignação face a todos os problemas sociais que a escola sente - porque é um barómetro - e de colectivamente apresentarmos caminhos e rumos a seguir. Dar assim corpo à nossa condição de educadores.

A consciência destas novas realidades - tão diversas das que enfrentava a escola do regime - não nos pode deixar serenos, tranquilos, estáveis, com um televisivo sorriso nos lábios olhando ao longe a brisa do mar. A verdade é que o nosso trabalho de professores é cada vez maior e os nossos alunos sabem cada vez menos. Não há seguramente nenhum professor ou professora que esteja contente com esta situação. É tempo de união, trabalho, discussão e elaboração de propostas. É tempo de dizer claramente que não queremos ficar sentados à porta do desenvolvimento. É tempo de participarmos na definição do que consideramos verdadeiro desenvolvimento. Está na hora de trazer para discussão pública os verdadeiros problemas da escola. É 'tempo de emalar a trouxa e partir'. A serenidade dos professores não se compadece com a leitura obediente e obrigada de circulares. A nossa serenidade está em saber pensar criticamente o nosso trabalho e o trabalho que se faz hoje nas escolas. A nossa tranquilidade deve nascer da nossa capacidade de exigir direitos de participação e de apontar novos caminhos a percorrer. A nossa estabilidade nasce de um trabalho sério e socialmente reconhecido.

Não é seguramente o que hoje se passa em Portugal. A Educação e o Ensino, tal como o país, vai desandando sem que se vislumbrem alternativas. A atitude do governo e das oposições - no que diz respeito à educação - resume-se numa frase: se uns têm fome os outros têm uma enorme vontade de comer. É tudo gente do 'regime', pacata, cinzenta, sisuda, incapaz da ousadia de pensar a escola, a sociedade e a vida fora deste regime.

Todos sabemos e sentimos que a escola do regime está a morrer. Que a sociedade actual, o tipo e a diversidade de alunos que temos, exigem novas respostas. Sabemos que as novas formas de difusão da informação, que as constantes transformações do conhecimento, da tecnologia, do mercado de trabalho exigem novas respostas da escola. Sabemos que para responder aos novos objectivos é necessário rever formas de organizar a aprendizagem, a distribuição do tempo, a organização curricular, os sistemas de avaliação, a organização das formas de participação dos professores e de outros parceiros educativos. Nada se compadece com os pilares do antigo sistema.

É com estes e outros desafios que partimos para mais um ano lectivo. Que pais, professores e governo estejam à altura do que nos pede a sociedade em que vivemos.

José Paulo Serralheiro


  
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Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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