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Tocata e Fuga

Não resisto a trazer um caso concreto recentemente decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo.

Em síntese, discutiu-se, num recurso interposto contra o Secretário de Estado da Administração Educativa, o índice de vencimento de um professor licenciado desde 1988, a realizar o estágio pedagógico ao abrigo do regime transitório da Portaria 850/89, por referência à sua situação de contratado no ano escolar 1993/94. Na defesa da posição do professor em causa, alegou-se o direito a vencer pelo índice 120, contraditando a posição do Ministério da Educação que compeliu - a palavra é adequada ... - o professor a assinar o contrato pelo índice 80, ao que aliás este reagiu de imediato através de reclamações, recursos, exposições, queixas e tudo o mais que pareceu próprio.

O enredo de toda a situação - que chega a envolver a quase habitual desigualdade de tratamento entre professores na mesma situação académica e profissional - é aqui dispensável para o que julgo importar. E o que aqui me importa mesmo é a dita decisão do Supremo Tribunal Administrativo, ou melhor, os fundamentos da decisão.

Depois de decidir favoravelmente ao professor em causa um abundante elenco de questões laterais - chamadas de prévias ... - suscitadas pelo M.E., o S.T.A. veio a aduzir uma tese que, não sendo absolutamente nova, é pelo menos assustadora (nem o próprio M.E., na sua resposta, se atreveu a tanto !), considerando que estava em causa uma relação jurídica de emprego de natureza contratual na qual a Administração não assumiu uma posição de autoridade em relação à outra parte - o professor - antes se colocando em posição idêntica, tal qual como tudo se passa no plano das relações contratuais regidas pelo direito privado. Daí que - continua o S.T.A. - tal relação contratual se tenha formado a partir da regra-mãe da liberdade contratual (citam-se até os artigos 405º e 406º do Código Civil ...), pelo que a modificação de qualquer cláusula do contrato por exemplo a do índice de vencimento - pressupõe o mútuo consentimento dos contratantes. Ora, no caso e no entendimento do Supremo, formou-se um contrato com base na livre e recíproca vontade do professor e do M.E., daí resultando que só com a vontade de ambos poderia ser alterado o índice de vencimento do professor contratado. Ou, dito de outro modo na perspectiva do que levou à interposição do recurso, não é possível ao Tribunal validar ou invalidar o índice de vencimento pelo qual o Ministério da Educação remunerou o professor ao longo daquele ano escolar.

A decisão foi assim aqui relatada por se julgar que ela assenta em pressupostos que começam por ser difíceis de compreender no plano do senso comum. De facto, os ditos pressupostos estão a anos-luz da realidade, o que é imediatamente perceptível por quem quer que saiba como as coisas realmente se passam.

Mas a gravidade da situação resulta também da análise da decisão no plano jurídico e do precedente que ela constitui. É que é juridicamente falacioso - para além de desajustado ... - falar-se aqui de liberdade contratual, desde logo porque não existe a primeira manifestação dessa mesma liberdade contratual, qual seja a liberdade de não contratar. De facto, e na perspectiva do professor, só um requintado cinismo jurídico permitiria sustentar que existiu em todo o processo e na situação profissional concreta essa liberdade de não contratar ! Por outro lado, aceitar as consequências da decisão significa aceitar que as normas que definem o estatuto profissional dos professores contratados não fazem qualquer sentido, são vazias de sentido útil e, dir-se-ia até, ridículas... face à liberdade do mercado e às contingências da oferta e da procura !

A ver vamos se do recurso entretanto interposto para o Pleno do S.T.A. resulta alguma coisa que inverta esta tentação de fuga para o oásis do direito privado ...

Rui Assis


  
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Autoria:

Rui Assis
Jurista
Rui Assis
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