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Squatters: Os Revolucionários Hurbanos

Uma sociedade sem Estado, onde as pessoas possam viver em conjunto sem necessitarem de regulamentos de carácter sansionatório. Onde haja espaço, para além do trabalho, para a cultura e lazer. Onde impere o sentido comunitário. A anarquia, tal como ela deve ser interpretada no melhor sentido. Esta é uma ideia defendida pelos squatters, ou "ocupas". Pessoas que defendem o direito à diferença e o direito a ocupar casas desabitadas ou abandonadas. Uma filosofia alternativa de vida.

A obtenção de lucro vai dominando o planeamento das cidades, enquanto quarteirões inteiros de grandes urbes europeias se degradam pelo desinteresse imobiliário que representam aos olhos dos investidores. Zonas não atractivas do ponto de vista financeiro, às quais, muitas vezes, corresponde uma desvalorização sócio-cultural da população. Uma situação muitas vezes repetida, que na perspectiva dos squatters representa uma oportunidade para erguer um espaço autónomo, onde habitação e animação social e cultural se congreguem no mesmo sítio. Mais do que uma oportunidade, um direito, assegurado pela maioria das constituições que regem os países desenvolvidos, mas que para muitos não passa disso mesmo: um direito. Uma ideia no papel. Uma utopia. A ocupação de casas abandonadas surge, assim, como uma resposta à falta de iniciativas do Estado nessas áreas e à vontade em travar a especulação imobiliária. Não só em Berlim, Londres ou Amsterdão. No Porto existem também casas abandonadas e squatters que as ocupam.

Raquel e Pedro, de 21 e 22 anos, foram alguns dos jovens que em 1990 iniciaram a ocupação de casas desabitadas na cidade do Porto. Contam como a sua vivência em alguns squatts europeus lhes despoletou a vontade de aqui espalhar o movimento. Não sendo um tipo de acção com tradições em Portugal, exceptuando os anos posteriores ao 25 de Abril, em que muitas centenas de casas passaram a servir de abrigo a retornados das ex-colónias e, uns anos mais tarde, a emigrantes africanos, pode dizer-se que só agora começa a ganhar forma um movimento organizado que defende esta ideia, baseada nos mecanismos legais previstos na lei e nos direitos inscritos na constituição. A ideia fundamental do squatting, ou ocupação, é a de organizar uma comunidade que consiga ser auto-suficiente e onde todas as pessoas trabalhem em conjunto para a sua manutenção. Um princípio que se orienta por regras em que a vontade e o trabalho colectivos se congregam e que, para além de representar não só uma habitação, constitua ao mesmo tempo uma espécie de centro de artes, concertos e debates aberto a todos.

Como em Santiago de Compostela, em Espanha, onde um prédio de um bairro mais desfavorecido foi transformado numa espécie de centro cultural. "Um sítio onde se pode beber um copo, utilizar computadores ou aprender fotografia", contam. A coordenação das actividades é feita por um máximo de dez a quinze pessoas, que contam apenas consigo e com o apoio dos vizinhos do quarteirão onde residem. "Esta é a outra perspectiva de ver os squatts: "Como um local de onde se podem desenvolver iniciativas culturais e levar as pessoas de fora a participar. Que constituam espaços de encontro, onde se possa discutir ideias e elaborar projectos para actividades. Algo que preencha a vida", refere a Raquel.

UMA CULTURA ALTERNATIVA

Juntamente com outros squatters, a Raquel e o Pedro fizeram já duas tentativas de ocupação de casas desabitadas, situadas nas proximidades da Praça da República, no Porto. A primeira serviu praticamente como uma experiência, já que sem água ou luz poucas coisas podiam ser feitas. Assim, o espaço servia essencialmente como local de reuniões do grupo a que pertencem, e ao qual acham mais correcto denominar "colectivo". Para piorar a situação, o proprietário do imóvel não levou muito tempo a saber que a casa tinha sido ocupada e, pouco tempo passado, desmantelou o telhado e obteve uma licença da câmara municipal para demolir o edifício.

A segunda ocupação, ocorrida por volta de 1993, foi diferente e mais conseguida. Tanto pelo facto de existir água e luz, como pela receptividade de alguns vizinhos à ideia. O primeiro passo a seguir foi o de dar conhecimento aos moradores da área qual o propósito da intervenção, esclarecendo-os através de panfletos distribuídos na rua ou colados nas paredes. Uma maneira prudente de preparar os futuros vizinhos, que inclusivamente foram convidados para uma festa de recepção. Depois foi o trabalho de limpar a casa, reparar pequenos estragos e dar as condições mínimas de habitabilidade ao espaço. Seguia-se a tarefa mais árdua: organizar internamente o squatt e fazer com que existissem regras sem que elas fossem impostas, criando um esquema de trabalho expontâneo e desenvolvendo o espírito de iniciativa das diferentes pessoas envolvidas.

"As únicas ajudas vieram do proprietário de uma mercearia local, que nos deu algumas caixas de alimentos antes de a encerrar para férias, de uma senhora que se ofereceu para dar algumas aulas de inglês e participar em algumas das actividades, e de uma assistente social que se interessou pelo projecto. Até chegou a levar lá os filhos", conta Raquel. Criaram-se ateliers de tempos livres e outras actividades didáticas para as crianças das ruas envolventes, uma infoteca e um bar onde eram servidas bebidas e refeições a preços económicos. Um espaço de "cultura alternativa onde se podia explorar potenciais e fazer algo em conjunto", refere o Pedro. Durante a ocupação desta casa, na rua de Faria Guimarães, os meninos de rua que por ali se encontravam a vaguear durante o dia fizeram daquela a sua casa e o seu espaço de entretenimento. Houve inclusivamente dois irmãos que ali passaram a pernoitar e que das paredes velhas fizeram, durante algum tempo, o seu quarto.

Mas também aqui o proprietário do imóvel ficou a par da ocupação e deu um prazo de quinze dias para que o colectivo retirasse todos os objectos da casa. No seu lugar, iriam ser construídos dois andares e uma cave que, afinal, "não passou do projecto". Tentaram ainda que as pessoas vissem o trabalho ali desenvolvido, convidando os meios de comunicação social, mas sem sucesso. A divisão interna do colectivo, dentro do qual não havia consenso sobre a estratégia a tomar, e o ultimato dado pelo proprietário acabou por ditar a morte do squatt. "Algumas das pessoas que ali vinham não tomavam iniciativas e apenas usufruíam do local. Como era quase impossível controlar as entradas, muitas delas apareciam não por que levassem a ideia a sério, mas para fazer daquilo um sítio que degenerou um bocado da ideia inicial".

Quem também já esteve em contacto com squatters de outras nacionalidades, mas que defende um conceito de ocupação um pouco diferente, é José Paiva, do colectivo ecológico Terra Viva. Um conceito talvez amadurecido pelo tempo e pelas vivências herdadas de um período revolucionário anterior ao surgimento do movimento. Vivia-se então os anos seguintes à revolução de Abril e a ocupação de casas devia-se a uma necessidade de carácter social. Esteve ao lado da Raquel, do Pedro e dos restantes "ocupas" nas duas tentativas efectuadas e aplaude a "iniciativa daqueles jovens em tentar criar um espaço de intervenção autónomo". Mas pensa que se verificou um tipo de ocupação que, "não sendo elitista, também não agia em benefício de algo". Além disso, devia ter sido realizada com o apoio e o envolvimento de outras associações e organizações de intervenção congéneres. "Como em Havenstrasse, em Hamburgo, onde os squatters locais conseguiram reunir o suporte de organizações como os verdes alemães e outros partidos de esquerda", exemplifica. Mas, vai dizendo, "na Alemanha é diferente, porque existe por trás uma organização e uma estrutura de apoio muito mais elaborada".

Para José Paiva, a ideia de squatt passa por algo mais abrangente e de carácter mais socializante, como a legalização de casas devolutas, o alojamento de pessoas sem abrigo e a criação de diversas actividades que incluíssem, por exemplo, bolsas de serviços para desempregados, especialmente em zonas mais desfavorecidas da cidade. Isto, "sem nunca pôr de lado a ideia de albergar e receber pessoas, como viajantes ou jovens que participem em intercâmbios culturais". O fundamental é criar laços com a população residente e desenvolver actividades em prol dessa mesma população. Uma espécie de intervenção que ajude a melhorar as condições sócio-culturais de pessoas com menores recursos. Aplicar a filosofia de "ecologia social", ou seja, o de uma nova política de base, participativa, em que devem ser cultivados e incentivados laços comunitários, em cidades ou em quaisquer outros locais onde possam nascer interesses comuns.

TRABALHO PROGRESSIVO

Mas se os objectivos são válidos, então porquê a dificuldade em se implantarem? José Paiva considera que o "actual clima social não é propício ao efeito "bola de neve", no qual uma ideia toma corpo, se desenvolve e é apoiada por sectores mais abrangentes da sociedade. Existem cada vez mais consumidores passivos que, na sua opinião, se vão tornando "progressivamente em células isoladas". Além disso, a cidade não tem grandes tradições de movimento social nesta matéria, exceptuando as ocupações que se fizeram depois do 25 de Abril".

A opinião da Raquel, se bem que explicitada em termos diferentes, conduz à mesma ideia: "O que faz falta é que as pessoas tenham iniciativas. Há muita gente a defender esta ideia, mas na altura de se organizarem em torno de um projecto deixa de existir concertação de posições e vontade em o levar em frente". A nível internacional o movimento de ocupações leva já quase trinta anos. "Durante esse tempo as pessoas dos mais variados estratos sociais enraízaram um outro tipo de mentalidade e aceitam com maior facilidade as ocupações".

Mesmo em Espanha, dominada durante décadas por um regime ditatorial em muito semelhante ao português, existe uma abertura mais expontânea das pessoas a este tipo de iniciativas. E podemos aprender com os nossos vizinhos galegos, que, mesmo numa cidade pequena com Santiago de Compostela, usufruem do squatt ali implantado sem olhar com ar desconfiado quem o frequenta. "Era espantoso ver como ali as pessoas traziam os filhos e a vizinhança ajudava na sua manutenção, através da doação de comida, roupas ou objectos antigos. Foi engraçado observar como uma velhinha, ao mesmo tempo que bebia uma chávena de chá preparada no squatt, conversava com alguém muito mais novo, de crista colorida na cabeça. Uma mentalidade completamente diferente", conta o Pedro.

"Mas as mentalidades mudam aos poucos. Não podemos é esperar que em poucos anos de actividade no Porto se consiga reunir todos os grupos alternativos em torno de projectos como este. Mas essas pessoas existem. É uma questão de trabalho progressivo", contrapõe Raquel, para o qual contribuem as fanzines e toda a informação nelas contida. "Olhos de Raiva" é um catálogo de distribuição de publicações, música e contactos. Elaborado pela "Distribuidora Alternativa", dele constam diversas fanzines de leitura anarco-sindicalista, macrobiótica, entre outras. São vendidas ao peso e constituem um dos meios que os squatters, e não só, utilizam para ter conhecimento do que se vai fazendo e trocar contacto com grupos espalhados pelo país e pelo estrangeiro.

Sem um local ainda definido, o colectivo da Raquel e do Pedro preparam uma terceira ocupação. Mas desta vez, além de estarem a planear uma intervenção mais cuidada, pensam em fazê-lo numa zona da cidade onde a pressão da especulação imobiliária não se faça sentir de modo tão forte. Sabem que se as coisas forem feitas de uma forma mais organizada e onde não haja um risco tão grande de o imóvel ser fechado por interesses monetários, recorrendo a apoios de organismos oficiais e organizações sociais, poderão passar das tentativas à prática. Afinal, "é com os erros que se vai aprendendo". Actualmente o colectivo encontra-se em fase de legalização jurídica sob a forma de associação de intervenção social e ambiental, que esperam ver oficializada dentro de pouco tempo. Sabem que, assim, terão mais hipóteses a nível jurídico de provar que o imóvel ocupado se destina a fins de utilidade pública.

A lei portuguesa é pouco tolerante no que se refere à ocupação de casas. Um imóvel devoluto ou abandonado só poderá ser considerado como propriedade privada se estiver selado com tijolos ou com algo que impeça a entrada física na propriedade, como um cadeado. No caso de não estarem reunidas estas condições ou de não se registar uma reclamação do proprietário num prazo de dez anos a quinze anos após a ocupação, bem como conseguir provar que os ocupantes fazem uso da casa para habitação, a lei prevê o direito de usocapião e esta passará a estar na posse dos novos ocupantes. Nos outros países a legislação é mais fléxivel e prevê prazos mais curtos para que o proprietário reclame a posse da casa. No país vizinho, por exemplo, a lei vai mais longe e proíbe o despejo imediato aos ocupadores de casas, dando tempo suficiente aos squatters espanhóis para recorrer à justiça. Em Inglaterra, contam, "existe inclusivamente um gabinete jurídico de apoio a squatters". Algo impensável numa cidade como o Porto, mas que não desanima a Raquel, o Pedro e os outros membros do colectivo a que pertencem. "Mais tarde ou mais cedo..."

Ricardo Jorge Costa


  
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Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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