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Arrumadores de Automóveis: Histórias de um Esquema Paralelo de Vida

"Arrumar carros é só um desenrasque. Se eu pudesse arranjar outro trabalho deixava esta vida...". Uns vêem assim as coisas. Outros acham que arrumar carros é "uma profissão como outra qualquer" e que não gostavam de fazer outra coisa. Afinal, como explicou o Paulo César, 29 anos, com lugar cativo fronte ao hospital de Santo António, "às vezes chega-se aos 300 contos por mês". Exagero ou não, o facto é que umas seis horas diárias de trabalho podem render a um arrumador de automóveis não menos do que 80, 90 contos mensais. Com um pouco mais de trabalho chega-se aos 100, 120 contos. Uma verdadeira profissão de "sucesso", aqui retratada em três breves histórias.

Todos os dias Rodrigo levanta-se por volta das sete horas da manhã e apanha o autocarro para o trabalho. Ou quase todos os dias. Há aqueles em que acorda ressacado de heroína e não consegue ir antes de comprar a dose que lhe tirará as dores e o deixará mais calmo. Apesar disso, já sabe que se chegar um pouco mais tarde do que é habitual à zona de estacionamento que costuma guardar, esta estará tomada. É por volta das oito, oito e tal que a praça do mercado do Bom Sucesso começa a estar à pinha e se torna uma das melhores zonas da cidade para fazer dinheiro. Logo, uma meia hora é suficiente para saber que perdeu pelo menos um conto ou dois para um dos outros arrumadores. Mas não costumam existir conflitos. Assim que Rodrigo chega ao local, quem quer que lá esteja desaparece.

"Só houve crise uma vez, quando um chico esperto julgou que tinha descoberto um lugar novo. Corremo-lo daqui e ele não voltou a aparecer", conta. Ambíguo ou não, disputa e solidariedade parecem andar de mãos dadas. Num mesmo sentido de comunidade coesa que leva as pessoas na rua Escura, por exemplo, a gritar "água" quando se aproxima a polícia. Um "não gosto de ti, mas deles muito menos".

A maior parte das pessoas que ali estaciona o seu carro já conhece o Rodrigo e muitos deles são já clientes certos. "Chegam quase sempre à mesma hora e eu já tenho um espaço guardado para eles", afirma, provando a confiança que algumas pessoas nele depositam ao mostrar dois molhos de chaves e apontando em duas direcções: "Umas são daquele fiat uno e as outras são daquele branco, mais à frente". Como pedra de toque afiança que não tem cadastro. Afirma inclusivamente que de todos os arrumadores que disputam lugares no Bom Sucesso, "só eu e outro rapaz mais novo é que nunca estivemos presos".

A história da vida de Rodrigo podia ser revista em milhares de vidas por esse mundo fora. Nasceu há trinta e um anos no bairro da Sé, mais propriamente na rua da Bainharia, onde ainda hoje mora com os pais. Mas podia também ter nascido nas docas de Nápoles ou numa qualquer favela de Buenos Aires. A história não seria muito diferente. Tem um filho de três anos, que já não vê há alguns meses, e um dos irmãos, traficante, está na prisão. Rodrigo é toxicodependente. Reabilitado por duas vezes e por tantas outras caído em desgraça, conta que "as curas de desintoxicação não conseguiram fazê-lo deixar a droga". Está "enterrado na farinha", como ele prefere dizer, à medida que se vai afastando para conduzir mais um veículo. Mais cem escudos, um "muito obrigado" e um "esteja descansada".

Rodrigo não gosto muito de dizer quanto ganha, afirmando que vai ganhando conforme as pessoas dão. "Uns são simpáticos, outros não. Mas nunca peço, eles só dão se quiserem". Diz isto com uma ponta de orgulho, como se tal atitude estivesse consagrada num hipotético código de ética profissional. Aos poucos, vai admitindo nunca ir para casa com menos de três, quatro contos no bolso. Uma parte do dinheiro é destinada a ajudar os pais e na sua alimentação, mas a larga fatia, no entanto, é para comprar heroína. "Para pagar o vício", como não hesita em afirmar. "Preciso de meter um pacote logo de manhã, outro depois do almoço e outro à noite. Às vezes meto mais um, quando faço um bocado mais de dinheiro".

"Antes de fazer isto trabalhei como paquete durante oito anos no jornal "A Bola" e estive empregado em algumas firmas. Mas ficava lá uns meses, meio ano, e depois voltava ao mesmo. Ressacava e não aguentava". Diz que já ganhou e gastou dinheiro suficiente para comprar dois carros e que, se quisesse, seria ele quem estaria hoje aqui a dar moedas aos putos para lhe guardarem o carro. Tendo em conta que cada pacote com cerca 0,25 gramas de heroína custa mil escudos, não será difícil fazer as contas e acreditarmos no que ouvimos.

E a polícia? "Chateia-me e de que maneira", responde, acusando a polícia municipal de já lhe ter ficado muitas vezes com dinheiro. "Se eles nos levam para o posto da pasteleira o mais certo é ficarmos sem nada". A tese é corroborada por dois dos seus colegas de plantão que, curiosos, se foram aproximando. "Mas isto para mim não é vida", afirma Rodrigo com ar de quem já muitas vezes bateu aquela frase. "Quero ver se no próximo mês volto a fazer uma cura e se procuro um emprego como deve ser. Quero estar com o meu filho, que mora com a mãe da minha mulher, e se passo mais tempo com ele". Um desejo que, à partida, estará condenado a morrer por ali.

DINHEIRO FÁCIL

A obtenção de dinheiro fácil para a droga é, sem dúvida, um dos principais motivos que leva estes a arrumar carros. É uma faceta que nunca escondem: a de toxicodependente. Mesmo os mais novos, como é o caso do João Paulo, 21 anos, que já esteve na cadeia de Custóias. Uma autêntica "escola" é como ele a caracteriza, contando que durante o ano e sete meses que ali esteve, cumprindo pena por um pequeno furto no interior de um automóvel, aprendeu muita coisa que não devia ter aprendido. "Foi lá que me enterrei no pó...", diz, olhando cabisbaixo. Saiu de casa com quinze anos por causa de "problemas familiares" e até hoje nunca mais voltou a ver os pais.

Vive juntamente com um amigo, também ele toxicodependente, com quem partilha o pagamento da renda de casa. Um amigo não. "Um irmão que nunca tive", explica, comprovando o facto através de um lacónico "se eu não tiver dinheiro para comprar paga ele". E vice-versa. Uma amizade medida a "pacotes", mas que não parece importunar o João Paulo. Também ele consegue fazer cem, cento e vinte contos por mês, dos quais "p'raí oitenta por cento são para a poeira". Mostra os braços em sinal do que acaba de dizer e olha-os como se visse neles a história da sua vida. Uma cara magra, com traços de rapaz ainda novo, marcada por olheiras e uma tez amarelada.

Apesar de andar nisto "há pouco tempo", o lugar que ocupa é um dos mais concorridos da cidade: o hospital de São João, no limite norte do Porto. "Mas foi difícil", adianta. "Ao princípio vinha para aqui muito cedo, mas o lugar já estava ocupado. Quando o gajo chegava expulsava-me daqui e, uma vez, quase me bateu. Eu fui insistindo, às vezes roubava-lhe um lugar sem ele dar por isso e, um dia, deixou de aparecer e eu fiquei com o lugar". Desde essa altura que, todos os dias, chega à rua Roberto Frias não mais tarde do que as oito horas. "Aqui há muitas professoras e médicos com dinheiro, e como a maioria já me conhece eu tenho sempre algum dinheiro certo. Só no Verão é que o movimento baixa e a gente recebe menos. O Verão não é lá muito bom...".

"Se eu pudesse voltar atrás? Se pudesse fazer isso acho que tinha ficado na oficina de serralharia do meu tio, a trabalhar com ele. Tinha cama e roupa lavada. Mas também não ganharia tanto dinheiro como agora. Era diferente".

Mas se uns dizem que a actividade de arrumador de automóveis é apenas um "desenrasque, outros não se importam absolutamente nada em admitir que é uma profissão como outra qualquer, que é para sustentar a mulher e os filhos. "Melhor do que muitos empregos onde só se ganha o salário mínimo, ou pouco mais". Como o Paulo César, 29 anos, um dos poucos arrumadores que deve possuir uma escolaridade acima da média - 12º ano, segundo o próprio - e que defende ser necessário ter uma atitude que dignifique a actividade. Uma espécie de cartão de apresentação. "Uma pessoa não pode obrigar as pessoas a darem dinheiro. Quem quer dá, quem não quer também não há problema".

A sua desenvoltura em chamar a atenção para um lugar vago só é comparável ao seu à vontade em afirmar frontalmente que "vale a pena trabalhar nisto. Isto dá dinheiro". E quem diz o contrário é hipócrita. Com duas filhas, uma de sete e outra de nove, e a mulher em casa sem fazer nada, que "outro emprego me garantia os nove, dez contos que todos os dias levo para casa?", pergunta-se. "Cinquenta contos não me dá para nada e não vou andar aí a roubar, não é?". Por esta altura estará o leitor a tentar fazer contas: 10 contos x 20 dias úteis = 200 contos (sem contar os fins-de-semana), livre de impostos e sem relógio de ponto ou advertência do patrão por chegar atrasado. Pois é: um verdadeiro achado para quem não se importa de "orientar vagas", faça chuva ou sol, de pé o dia inteiro. Uma excelente alternativa para recém-licenciados no desemprego.

Dividida em três parcelas, a rua que atravessa a entrada principal do hospital de Santo António está "concessionada" a outros tantos arrumadores. "Aquele do outro lado da rua é meu colega, mas aquele ali em cima já é diferente de nós. É mais velho e o problema dele é a bebida. São duas situações diferentes", explica Paulo César em bom tripeiro, que nem a conclusão dos estudos secundários consegue disfarçar.

"Os do Bom Sucesso não são arrumadores, são assaltantes. Riscam carros, partem vidros e furam pneus. Só querem dinheiro para a droga. Eu falo por mim que não sou toxicodependente. Já fui, deixei e agora só fumo uns charros. Depois, as pessoas pensam que somos todos iguais e por uns pagam os outros". A única coisa que Paulo César pede é que o deixem estar ali sossegado, já que "nunca ninguém reclamou de mim e só quero dinheiro para sustentar a família". Não compreende porquê que o presidente da câmara, Fernando Gomes, não atribui licença aqueles que derem provas de não estarem a trabalhar só para consumir droga. "Uma injustiça", nas suas palavras.

PROGRAMA DE INTERVENÇÃO MUNICIPAL

No ano passado, a Câmara Municipal do Porto levou a cabo 177 entrevistas - tantas quantas o número de arrumadores que se encontravam dispersos pela cidade - para tentar definir o seu perfil sócio-económico e, posteriormente, elaborar um programa de intervenção que os reintegrasse profissionalmente de acordo com as suas especificidades. Do estudo desenvolvido, chegou-se à conclusão de que ser trata de uma população essencialmente masculina, a maior parte com idades compreendidas entre os 25 e os 34 anos, com uma grande percentagem de antecedentes criminais e problemas de toxicodependência, como, aliás, se pôde constatar através das declarações. A maioria é ainda originária de freguesias onde existem bairros sociais, casos de Paranhos, Aldoar e Sé. Cerca de um terço teve como último emprego a construção civil.

O programa está pronto desde o mês passado e prevê, entre outras acções, a promoção da qualificação profissional e a educação recorrente. É que muitas destas pessoas tem apenas a instrução primária e poucos lograram atingir patamares mais altos. Mas a proposta não agrada à maioria. Muito provavelmente, o dilema apodera-se nesta alturas dos seus pensamentos: porquê deixar de fazer uma coisa que até não dá assim tanto trabalho e onde se pode tirar dois ou três salários mínimos ao fim do mês?

Rodrigo, por exemplo, diz que não precisa de "cursos que ensinam a não fazer nada". "O quê que eu vou fazer depois? Limpar as ruas? A apanhar folhas nos jardins e chegar ao fim do mês sem quase dinheiro nenhum?. Não". Para isso, diz, "preferia voltar ao que faço melhor: despachar encomendas a alta velocidade com motos de boa cilindrada". Mas mais cedo ou mais tarde voltaria a cair no mesmo e a estragar tudo", reconhece. João Paulo não tem uma opinião formada acerca do assunto e limita-se a dizer que não volta à escola, "que ela não traz nada de novo, não ensina a trabalhar". Quanto ao Paulo César já estudou "tudo o que tinha a estudar" e também não quer voltar a frequentar o ensino. "Só se fosse para ir para um emprego onde me pagassem bem".

E no dia em que a actividade for definitivamente dada como ilegal e se incorrer em sansões? Como é que vão fazer para viver?

As respostas variam, mas é unânime que não podiam deixar de trabalhar. No entanto, tanto Rodrigo como João Paulo advertem para as consequências que tal medida acarretaria nos indíces de criminalidade. Na opinião do primeiro, estes subiriam em flecha e por "cada cem assaltos na cidade do Porto por dia, ia passar a haver mil", ironiza. O outro sustenta a sua teoria no benefício que os arrumadores trouxeram em relação à diminuição do número de auto-rádios roubados que, caso estes tenham de abandonar a actividade, voltaria a aumentar. "E não serve de nada mandarem mais polícias de intervenção aqui para o Porto", afirma. Paulo César, o mais graduado academicamente acha que "as pessoas têm de comer de alguma forma, embora eu, por mim, tentasse arranjar outra coisa para fazer".

Ricardo Jorge Costa


  
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Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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