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Contradições à Margem

Está a ficar cada vez mais difícil. Sentimos vergonha de pensar e de escrever. Dar a conhecer o que se pensa e escreve já se tornou um atrevimento.

Pensar, reflectir, entender as coisas simples da vida de modo diverso do da maioria é um crime. A safa é que este crime ainda não não está escrito no CódigoPenal. Não nos levam ainda para Custóias.

A condenação é ainda moral e política. Ficamos na pior prisão: à margem.

O cidadão e o jornal que não sigam a moda. O cidadão e o jornal que não falem e escrevam sobre o tema da moda. O cidadão e o jornal que façam a sua própria agenda. O cidadão e o jornal que não sigam a agenda feita pelas televisões. O cidadão e o jornal que não sigam as cotações do mercado, as económicas e as políticas. O cidadão e o jornal que não queiram ser meros espectadores. O cidadão que teime em ser actor do seu próprio destino. O cidadão e o jornal que critiquem a sociedade do espectáculo em que vivemos. O cidadão que rejeite o personagem que outros lhe destinaram. O cidadão que queira ser pessoa e não apenas mais um personagem do espectáculo social em que vivemos. O cidadão que teima em construir, no mínimo, a sua própria personagem. Está condenado. Deve sentir que é sua obrigação retirar- se para a pior prisão: a margem.

Um cidadão, ou jornal, que se atreva a propor a troca de ideias. Um cidadão, ou jornal, que teime em por em comum as suas dúvidas e incertezas. Um cidadão, ou jornal, sem certezas. Um cidadão, ou jornal, que seja portador de incertezas várias. Um cidadão que teima em interrorgar-se, permanentemente, a si próprio. Deve sentir que é sua obrigação não incomodar e retirar-se para a pior das prisões: a margem.

Um cidadão que se dispa diariamente dos seus interesse pessoais e imediatos. Que só se sinta pessoa por se sentir membro igual de um grupo ou comunidade. Um cidadão que sinta que a sua imagem social se construiu pelo que faz de concreto no dia a dia. Um cidadão descomprometido com qualquer estratégia de construção artificial da sua imagem social. Está condenado à pior das prisões: ficar à margem.

Um cidadão que não é capaz de pensar e escrever o que a maioria quer que ele pense e escreva. Um cidadão, ou jornal, que não consensualiza, antes lança inquietação e incerteza. Um cidadão, ou jornal, incapaz de seguir doutrinas. Um cidadão, ou jornal, que despreza rituais e modelos de comportamento já consensualizados por grupos ou maiorias. Tem apenas um destino. Condenar-se a si próprio à pior das prisões: a margem.

Sejamos lúcidos e realistas. Sejamos práticos. Sejamos consensuais. As maiorias, seja onde for, exigem profetas. Gente que sabe o que todos desejamos e queremos.

Não é por acaso que as novas igrejas têm sucesso, têm público.

Pensar por si dá trabalho e gera confusão. A maioria quer paz e sossego. Os políticos, os padres e os sindicalistas que lhe tratem da suas vidinhas. É para isso que votam, pagam e descontam.

Se possível venha uma boa refeição, algum amor de rotina. Cumpre-se a função e a obrigação. A vida é um paraíso, se o dinheiro permite que os filhos comam farelos e todos os Quiks que a televisão propõe.

Mas pensar, trocar ideias, incomodar-se, encontrar-se, intervir, participar, é uma maçada, um atentado ao actual direito à rotina, um roubo ao tempo que é necessário para a televisão, ao estar a par da moda, a par dos acontecimentos que vale a pena acompanhar.

Viva a sociedade do espectáculo onde, democraticamente, todos somos actores. Ninguém conteste o autor do guião, menos ainda o trabalho do encenador. Meus senhores e minhas senhoras, aceitem os vossos papéis! Sejam a bela ou o monstro, o pobre ou o rico, o burro ou o esperto, o poder ou a oposição... Não pensem, não critiquem, não recusem o papel que vos calhou! Façam e participem do espectáculo social! Sigam a corrente. Representem os vossos papéis e batam palmas. Votem de quatro em quatro anos. Votem nos actores principais. Viva a democracia! Vivó Nogueira! Abaixo o Guterrez! Coitadinho do Carvalhas!

O cidadão, e o jornal que pensam, que propõem a troca de ideias, não são mais do que uns chatos, uns presunçosos, uns picuinhas, na melhor das hipóteses uns pobres diabos que, de vez em quando, até nos divertem porque têm alguma piada. Condenem-se pois à pior das prisões: a margem.

Tudo se agrava se o cidadão que teima em pensar não estiver devidamente certificado para pensar.

Na Idade Média toleravam-se os bobos da corte. Também hoje se tolera que um professor universitário pense. Está devidamente certificado para pensar e para ensinar a pensar. Por isso até pode aspirar a uma comenda pelo desempenho socialmente organizado para tal função. Se cumprir as regras, pode não ser condenado à pior das prisões: a margem.

Que outros professores pensem, que apresentem propostas e sugestões, isso já é caso bicudo. Não estão certificados para pensar, sobretudo pare terem pensamentos diferentes dos da maioria. devem, quando muito, dizer mal dos alunos na sala de aula. E assinar o livro de ponto. Preparar as pautas antes das reuniões de avaliação. Decidir, inteligentemente, a percentagem dos alunos a reter. Não levantar problemas nas reuniões de avaliação. Não por em causa a incompetência (se a houver) do orgão de gestão da escola. Não criticar a política do Ministério da Educação. Assumir docilmente os critérios e normas de avaliação dos alunos.

E no entanto há quem tropelie os programas, faça de conta que os dá (só depende de como se elaboram os sumários).

Esqueçam. Esqueçam, também, essa coisa da área escola. Façam de conta que nunca ouviram falar em tal questão. Escolham os 10 a 12% dos vossos piores alunos e chumbem-nos. Se forem professores de matemática ou mesmo de física podem chumbar cerca de 20%. Acreditem, não fica mal, deixa no ar a ideia que estas disciplinas são difíceis.

Haverá quem agradeça.

José Paulo Serralheiro


  
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Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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